Um repórter na mira de Putin

Há três anos, o jornalista russo Mikhail Zygar é considerado “agente estrangeiro” e está incluído na lista de procurados pelo Ministério da Justiça da Rússia. Ele foi condenado a oito anos e meio de prisão em seu país por ser uma voz crítica à presença das tropas russas na Ucrânia e por denunciar crimes de guerra cometidos na invasão militar. Hoje, vive exilado em Nova York, nos Estados Unidos. Mas, pela segunda vez, desembarcou no Brasil para participar do Festival piauí de Jornalismo, que começou neste sábado (6), na Cinemateca Brasileira, em São Paulo (ele veio pela primeira vez em 2016). Há poucos dias, o ministro do STF André Mendonça concedeu um habeas corpus preventivo para garantir que Zygar não seja preso em um acordo de extradição com a Rússia enquanto estiver no Brasil.

“Fui condenado pelo crime de disseminar ‘notícias falsas’ ao denunciar crimes de guerra cometidos pelo exército russo na Ucrânia. Para o governo de Putin, não há uma guerra, há apenas uma operação militar. Logo, para o governo, não há crimes de guerra”, disse Zygar, que foi entrevistado no palco pelas jornalistas Consuelo Dieguez (piauí) e Patrícia Campos Mello (Folha de S.Paulo). Na conversa, ele falou sobre a atuação russa na guerra e a forma como, ao longo dos anos, o governo Putin minou o jornalismo independente na Rússia.

A perseguição contra Zygar, especificamente, começou por volta de 2011. Naquele ano, uma onda de protestos contra o governo se espalhou pela Rússia. Zygar comandava o Dozhd, também conhecido como TV Rain, único canal de tevê independente do país, e cobriu as manifestações, o que desagradou o Kremlin. Dali em diante, o Dozhd passou a sofrer boicotes de operadoras de tevê a cabo e, consequentemente, dificuldades financeiras. Para continuar no ar, teve de recorrer a campanhas de crowdfunding. Em 2015, ainda morando em Moscou, Zygar lançou o livro Todos os homens do Kremlin: os bastidores do poder na Rússia de Vladimir Putin. A obra virou best-seller e foi traduzida e distribuída em vários países. A pressão contra a emissora de tevê só aumentou, e Zygar se viu forçado a pedir demissão.

O jornalista logo virou uma referência ao redor do mundo, denunciando desmandos do governo Putin e a censura crescente contra a imprensa russa. Em 2014, ganhou o Prêmio Internacional de Liberdade de Imprensa concedido pelo Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), uma ONG sediada em Nova York que atua em defesa do jornalismo.

No Festival piauí, Zygar explicou que a perseguição a jornalistas se acentuou desde a invasão à Ucrânia, em 2022. O governo Putin criou leis que criminalizam qualquer discurso que divirja das fontes oficiais, categorizando como fake news reportagens que tratam abertamente da guerra. O jornalista explicou que o Telegram, apesar de muito utilizado para disseminação de notícias falsas em vários países, se tornou uma válvula de escape para o jornalismo na Rússia. “É uma das poucas plataformas não oficiais operando com liberdade no território russo. Muita gente, de forma independente e voluntária, faz um trabalho de jornalismo cidadão compartilhando informações livres pelo Telegram”, disse Zygar. “Desde que a guerra começou, as coisas pioraram muito para a imprensa na Rússia. Um milhão de russos, incluindo jornalistas independentes, fugiram do país. A mídia independente da Rússia hoje funciona fora da Rússia, exilada em países como os Estados Unidos, Austrália, Brasil ou Canadá.” 

Desde que se autoexilou em Nova York, Zygar passou a colaborar com veículos americanos como The New York Times e The Washington Post. Também faz análises políticas sobre a Rússia na CNN. Em 2023, lançou o livro War and Punishment: Putin, Zelensky, and the Path to Russia’s Invasion of Ukraine (ainda sem tradução para o português), considerado pela revista The New Yorker um dos melhores lançamentos do ano. Graças às fontes que cultivou quando ainda vivia em Moscou, Zygar continua tendo acesso aos bastidores do Kremlin.

“Muitas dessas fontes estão sofrendo por causa da guerra. Elas precisam tomar decisões com as quais não concordam para se manter no governo, mas ainda mantêm aspirações democráticas e desejam que a Rússia faça parte da Europa. Algumas delas pararam de se comunicar comigo depois que fui condenado”, disse Zygar. Ele contou que, seis dias atrás, o governo proibiu “agentes estrangeiros” de participarem de atividades educacionais e de conscientização, o que fez com que, preventivamente, livrarias retirassem de circulação livros críticos ao Kremlin – como os de Zygar.

A repórter da piauí Consuelo Dieguez perguntou ao jornalista sua opinião sobre a justificativa de Putin para a invasão à Ucrânia. O presidente alega que a operação militar é legítima defesa, já que o país vizinho vinha se aproximando da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), grupo que reúne as principais potências ocidentais. “A Otan não ia atacar a Rússia”, respondeu Zygar, de bate-pronto. “A Otan não consegue nem ajudar a Ucrânia. Putin entrou na guerra porque estava em risco, perdendo popularidade. Ele precisava criar um inimigo externo imaginário, então inventou essa história de que a Otan e o Ocidente queriam atacar a Rússia. Infelizmente não vejo Putin disposto a terminar a guerra. Ela vai continuar.”

A certa altura da conversa, Zygar relatou que havia dormido mal nas noites anteriores ao Festival piauí. E que isso acontecia toda vez que precisava viajar. “Pelo menos três vezes por semana eu tenho sonhos malucos em que me vejo em Moscou e tenho a sensação de que vou ser preso”, disse o jornalista. “Meus amigos americanos [preocupados com a escalada autoritária de Trump] me perguntam: quando saber a hora de ir embora do país? Eu respondo: nós, jornalistas russos, trabalhamos e lutamos por 22 anos até as coisas ficarem realmente arriscadas e precisarmos ir embora. É cedo demais para dizer que o jornalismo americano está morrendo. Mas o pior que está acontecendo nos Estados Unidos é a autocensura. Hoje em dia eu hesito na hora de escrever, com medo de ser deportado.”



Piauí Folha

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