Numa manhã de agosto de 2021, o general da reserva Walter Souza Braga Netto enviou ao tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens da Presidência da República, uma fotografia carregada de simbolismo: tanques de guerra apareciam perfilados diante do Congresso Nacional em abril de 1964. “Foto histórica. Não manda para o 01, mas pode mostrar”, escreveu o general, referindo-se ao presidente Jair Bolsonaro. Não fica claro o motivo dessa recomendação cautelosa. O que se sabe é que, dias depois, a imagem se materializou: tanques da Marinha e outros veículos blindados percorreram a Esplanada dos Ministérios, passando ao lado do Congresso, que na ocasião analisava uma PEC que instituía o voto impresso.
O desfile causou alarde. Mesmo as emas do Palácio do Alvorada sabiam que aquilo era uma tentativa de intimidação aos parlamentares (Arthur Lira, que não pode ser acusado de antipatia com Bolsonaro, referiu-se ao episódio como uma “trágica coincidência”). Mas Braga Netto, na época ministro da Defesa, negou qualquer intenção política por trás do gesto. Disse que o objetivo do desfile era entregar um convite a Bolsonaro para que comparecesse à Operação Formosa, exercício militar realizado todos os anos na cidade de Formosa (GO).
Para o procurador-geral da República, Paulo Gonet, a conversa com Mauro Cid desmente Braga Netto. O diálogo, que antes não havia sido divulgado, consta entre as mais de quinhentas páginas de alegações finais que Gonet apresentou esta semana ao STF. A papelada marca a fase final da acusação contra os réus da tentativa de golpe de Estado, que agora poderão, enfim, ir a julgamento. Ela reforça pontos que já estavam presentes na denúncia, aprofunda outros e apresenta novas informações que contradizem parte dos interrogatórios.
Da longa análise feita por Gonet, destaca-se Braga Netto. O documento traz novos indícios de que o general, mais do que um apoiador entusiasmado do golpe, foi talvez o seu mais dedicado arquiteto – além, é claro, de Bolsonaro. Parte desses indícios foi extraída do celular do coronel Flávio Peregrino, um dos assessores de Braga Netto. Na denúncia apresentada em fevereiro, quando a Polícia Federal ainda não havia concluído a perícia do aparelho, Peregrino foi citado apenas uma vez. Agora, nas alegações finais, foi citado doze vezes.
A conclusão de Gonet, desta vez, foi mais contundente. As mudanças aparecem em quatro momentos:
1 – O Sete de Setembro de 2021
O episódio do desfile militar, em 2021, foi seguido por uma escalada sem precedentes do discurso golpista. O Sete de Setembro daquele ano talvez tenha sido o mais perigoso desde a redemocratização. Bolsonaro, discursando para uma multidão na Avenida Paulista, xingou o ministro Alexandre de Moraes de canalha e proferiu uma ameaça: “Ou o chefe desse Poder [Luiz Fux] enquadra o seu [ministro] ou esse Poder pode sofrer aquilo que nós não queremos.” Em Brasília, caminhoneiros alinhados ao presidente romperam os bloqueios policiais e percorreram a Praça dos Três Poderes pedindo uma intervenção militar.
O documento apresentado por Gonet dá a Braga Netto protagonismo nas articulações golpistas. Aponta que ele não apenas endossou as manifestações como trabalhou para garantir que elas tivessem o tom desejado, de contestação ao sistema eleitoral e enfrentamento ao STF. Isso não aparecia na denúncia apresentada em fevereiro. “Braga Netto atuou de modo a transformar as celebrações do feriado de Sete de Setembro em um verdadeiro palanque de ataques à urna eletrônica e ao Poder Judiciário”, escreveu Gonet. Para embasar a afirmação, ele cita arquivos que foram encontrados com Peregrino, o auxiliar de Braga Netto, e que não constavam na acusação. Um deles, segundo a PGR, “chegava a delinear hipóteses de uso da GLO [operação de Garantia da Lei e da Ordem] e das Forças Armadas para garantir o sucesso das manifestações, criando uma ‘narrativa favorável e alinhamento de discurso’”.
Gonet também cita um diálogo entre Braga Netto e Mauro Cid que ainda não havia sido juntado aos autos. Ele ocorreu em 10 de setembro, dias depois do Feriado da Independência, quando Bolsonaro recuou da retórica bélica contra o Supremo. Cid começou dizendo a Braga Netto que Bolsonaro estava “apanhando muito”. Braga Netto respondeu: “Você me falou. Mas agora nós podemos virar a mesa porque ele fez tudo para apaziguar.” O então ajudante de ordens continuou, dizendo que havia sido costurado um acordo político que só prejudicava Bolsonaro: “o Pr [presidente] ganhou migalha… ou nada…” Braga Netto então afirmou: “Se não cumprirem [o acordo] ele abre o jogo e viramos com ele. Os Cmts [comandantes] estão cientes. Ele vai para mídia conta o combinado e rompemos.” Na visão do procurador-geral, é uma prova de que Braga Netto trabalhava pelo golpe, dizendo ter apoio dos militares.
2 – A contestação às urnas
Em julho de 2022, já escolhido por Bolsonaro como seu candidato a vice-presidente, Braga Netto participou da reunião ministerial que se tornou uma das peças-chaves da denúncia da PGR. Gravada por Mauro Cid, a reunião foi revelada posteriormente, quando a Polícia Federal confiscou arquivos do ex-ajudante de ordens. Naquele encontro a portas fechadas, Bolsonaro cobrou de seus ministros empenho total para desacreditar o sistema eletrônico de votação. Braga Netto endossou o pedido do chefe, e citou, em tom de alerta, uma declaração do então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Edson Fachin: “Saiu uma notícia agora dizendo… o Fachin dizendo que auditoria não muda resultado de eleição.”
A fala de Braga Netto já era conhecida e constava na denúncia apresentada ao STF. O que não constava, até agora, eram os detalhes sobre como ele atuou na campanha para desacreditar as eleições. Esses detalhes agravaram a acusação. Agora, a PGR diz que Braga Netto não apenas participou, mas “supervisionou” essa campanha de desinformação.
Gonet relata que Braga Netto foi participante ativo do grupo de WhatsApp Eleições 2022@, criado em 5 de novembro de 2022 pelo então senador Luis Carlos Heinze (PP-RS). Além deles dois, estavam no grupo alguns militares da reserva, políticos e técnicos contratados pelo PL para investigar supostas fraudes nas urnas eletrônicas. Nesse ambiente virtual, segundo a PGR, criou-se a tese de que Bolsonaro havia vencido a eleição com 51,05% dos votos nas urnas consideradas “válidas”. Essas informações não constavam na denúncia original.
“Na certeza de que as ações da organização criminosa seriam exitosas quanto à comprovação de fraude nas eleições, os integrantes do grupo ‘Eleicoes 2022@’ dedicaram-se a minutar uma petição endereçada ao então ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, fazendo alusão a supostas ações de fiscalização que configurariam ‘fato novo’ para o questionamento do resultado das eleições”, escreveu Gonet. A petição mencionada por ele é o arquivo “bolsonaro min defesa 06.11- semifinal.docx”, enviado por Cid a Braga Netto.
Na visão da PGR, o fato de Cid ter enviado isso a Braga Netto comprova não apenas que o general participou da trama golpista, como tinha ascendência sobre ao menos uma parte do grupo. Outra evidência disso, segundo Gonet, é o fato de que os participantes do grupo deixaram para Braga Netto decidir quem assinaria a petição. “É pra vocês sugerirem”, disse o então deputado federal Osmar Serraglio (PP-RS) a Flávio Peregrino, assessor do general.
“Não resta dúvida de que Braga Netto detinha autoridade e poder de decisão sobre o conteúdo e a destinação da petição”, conclui Gonet. Segundo ele, os participantes do grupo queriam influenciar o relatório que as Forças Armadas estavam produzindo sobre a segurança das urnas eletrônicas. “Braga Netto e seus subordinados esperavam que o documento elaborado com base nos materiais do IVL [Instituto Voto Legal] e do grupo ‘Eleicoes 2022@’ pudesse configurar um ‘fato novo’ capaz de alterar as conclusões do relatório castrense.”
3 – A atuação pelo golpe de Estado
Para Gonet, a participação de Braga Netto na tentativa de golpe é melhor compreendida quando se lê atentamente um documento já conhecido, intitulado Operação 142. Batizado em referência ao artigo 142 da Constituição, ele foi encontrado na sede do comitê de campanha do PL em Brasília – mais especificamente, na mesa de Flávio Peregrino, o assessor de Braga Netto. Tratava-se de uma cartilha do golpe, estipulando um decreto que previa, entre outras coisas, “Anulação das eleições”, “Prorrogação dos mandatos”, “Substituição de todo TSE”, “Preparação de novas eleições”, “Interrupção do processo de transição”, “Mobilização de juristas e formadores de opinião” e, por último, o objetivo final: “Lula não sobe a rampa.”
Essas informações constam na denúncia original. Mas, interrogado no STF há pouco mais de um mês, Braga Netto disse não ter ouvido falar da Operação 142 e que Peregrino nunca tratou do assunto em sua presença. Gonet usou então as alegações finais para rebater essa afirmação. Segundo ele, é improvável que Braga Netto não tivesse conhecimento do plano, já que o general “contou com a sua assessoria [de Peregrino] nas ações voltadas à fabricação e divulgação de fraudes eleitorais sabidamente inexistentes, no grupo de WhatsApp intitulado Eleicoes 2022@”. O procurador-geral relembra também uma informação que já constava na denúncia: o fato de que Peregrino guardou o documento numa pasta chamada Memórias Importantes. Para Gonet, “não parece razoável que o assessor do general tenha eleito como importante um documento que sequer tenha chegado ao conhecimento de seu chefe”.
Outro ponto que complica Braga Netto é a reunião que ele sediou em seu apartamento no dia 12 de novembro de 2022, com a presença de Mauro Cid, do major Rafael de Oliveira e do tenente-coronel Hélio Ferreira Lima. Em sua delação, Cid afirmou que o encontro serviu para planejar a parte militar do golpe de Estado, incluindo o assassinato de autoridades. Braga Netto negou, no interrogatório realizado no STF, que esses assuntos tenham sido discutidos.
Agora, Gonet incluiu no processo uma informação trazida por Cid em uma audiência recente, em junho. Segundo o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Braga Netto lhe disse as seguintes palavras naquela reunião: “Então, não, é bom que você não fique, [ininteligível] conversar. Até para não aproximar nada do presidente ou nenhuma relação com manifestantes ou contatos com alguém próximo ao presidente.” Para o procurador-geral, é um indicativo de que Braga Netto estava discutindo, sim, um plano de golpe e temia que, devido à presença de Cid, Bolsonaro pudesse eventualmente ser acusado de envolvimento com aquela trama.
Gonet também contestou a afirmação de Braga Netto de que os militares Rafael de Oliveira e Hélio Ferreira Lima não eram conhecidos seus. “É imperioso notar que a visita de dois ‘desconhecidos’, levados por um tenente-coronel à casa de um general de quatro estrelas, sem justificativa plausível ou aviso prévio, contraria frontalmente as normas de conduta e hierarquia que regem as relações militares, pautadas por formalidade e respeito aos superiores”, ele escreveu. “A narrativa se revela ainda mais fantasiosa considerando que os supostos visitantes eram militares das Forças Especiais que sequer tinham residência em Brasília, sendo descabido admitir que teriam viajado centenas de quilômetros para uma simples visita de cortesia. Tais circunstâncias reforçam a percepção de que se tratava de um encontro deliberadamente oculto e incompatível com as práticas militares corriqueiras.”
Além disso, Gonet lembrou que a reunião na casa de Braga Netto ocorreu simultaneamente a uma videoconferência em que Bolsonaro e integrantes do alto escalão do governo discutiram as análises feitas pelo IVL e o grupo Eleições 2022@. Segundo Mauro Cid, o general optou por não participar da reunião, afirmando: “Eu já sei qual é o assunto.” Para a PGR, é mais uma demonstração de que Braga Netto tinha conhecimento das teses sobre a urna eletrônica. “Braga Netto e Mauro Cid encontravam-se completamente imersos na execução de ações voltadas à implementação do golpe de Estado almejado pela organização criminosa.”
4 – Golpismo até o último minuto
Em 14 de dezembro, reunidos no Ministério da Defesa, o comandante do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, e o comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, afirmaram ao então ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, que não apoiariam nenhum decreto golpista. Segundo a Procuradoria-Geral da República, a recusa dos comandantes não foi bem recebida pelo governo. Braga Netto quis retaliar.
Isso também já constava na denúncia de fevereiro e agora foi descrito com maior nível de detalhes. A estratégia de Braga Netto, segundo Gonet, consistia em fomentar entre militares e bolsonaristas a ideia de que os comandantes das Forças Armadas que se opunham ao golpe eram “traidores da pátria”. Em mensagens trocadas com aliados, como o ex-major do Exército Aílton Barros, o general incentivou ataques virtuais a Freire Gomes e Baptista Junior, buscando constrangê-los publicamente e pressioná-los a reverem suas posições.
As provas colhidas pela investigação mostram que os dois comandantes sofreram ataques sistemáticos depois daquela reunião em dezembro. Freire Gomes relatou em depoimento que sua casa, em Brasília, passou a ser alvo de manifestações constantes com gritos pró-golpe. Ele também foi alvo de xingamentos e ameaças nas redes sociais. Baptista Junior contou que foi rotulado como traidor e “melancia” – expressão usada para acusar militares de serem comunistas (verdes por fora e vermelhos por dentro). Segundo ele, os ataques começaram justamente no dia 14 de dezembro e levaram-no à decisão de desativar suas redes sociais.
No interrogatório, em junho, Braga Netto foi confrontado com algumas das mensagens que disparou, nas quais inflamava militares e aliados do governo a criticar os dois comandantes. Ele disse que se recordava de parte dessas mensagens, mas que os prints estavam “desconexos”. E afirmou: “Eu nunca determinei nem coordenei nenhum tipo de ataque contra o Freire Gomes, nem contra o Baptista Júnior, nem contra o Garnier, nem contra ninguém.”
Nas alegações finais, Gonet contestou as respostas de Braga Netto, afirmando que as conversas foram extraídas diretamente de dispositivos eletrônicos por meio de um procedimento oficial da Polícia Federal, com respeito à cadeia de custódia e à integridade do material recolhido. Afirmar que os prints foram manipulados, disse o procurador, é ilógico, sobretudo porque eles foram obtidos no celular do ex-major Aílton Barros, aliado de Braga Netto. Se adulterou as mensagens, Barros não fez um bom trabalho, já que ele próprio é incriminado por elas. Os diálogos obtidos na investigação, segundo Gonet, revelam “de forma inequívoca” a pressão de Braga Netto sobre os militares que resistiram ao golpe.
Gonet incluiu também novas mensagens enviadas por Braga Netto entre junho e julho de 2023 – demonstrando, portanto, que ele manteve a pressão pelo golpe até mesmo quando o novo governo já completava seis meses. Conversando com um tenente, o general enviou uma foto de Lula ao lado do comandante do Exército, Tomás Paiva, coberta pelo seguinte texto: “Que a campanha comece já!!! A todos os patriotas: no dia 07 de setembro Independência do Brasil vamos esvaziar todas as comemorações para mostrar que não será perdoado o abraço que as FORÇAS ARMADAS deram nesses comunistas que tomaram o poder!!”
A conclusão da PGR é de que, se um dia houve dúvidas sobre a participação de Braga Netto na trama do golpe, hoje está claro que ele foi mais do que um participante – foi um dos organizadores. Sob sua batuta, diz Gonet, a organização criminosa planejava uma sequência de medidas autoritárias, como prisões ilegais de adversários, assassinatos de autoridades, decretação de GLOs e estados de Defesa. Segundo o procurador-geral, Braga Netto fabricou denúncias falsas de fraude eleitoral; disseminou mentiras contra o Judiciário; promoveu ataques contra adversários; ajudou a financiar atos antidemocráticos; e, por fim, recebeu informações sobre os planos de assassinato de Moraes, de Lula e de Geraldo Alckmin.
Com as seguintes palavras, Gonet encerrou o capítulo sobre Braga Netto:
As provas dos autos demonstram, portanto, que Braga Netto auxiliou Jair Bolsonaro em seu plano de ruptura institucional, mesmo ciente das graves e imprevisíveis implicações que dele poderiam advir. Braga Netto contribuiu decisivamente para a escalada de tensão institucional que culminaria nos violentos protestos registrados em 08/01/2023. O resultado trágico dos atos antidemocráticos deflagrados em Brasília, cuja índole golpista já foi assentada pelo Supremo Tribunal Federal, tem ligação direta com a conduta adotada pelo réu, que deve responder, portanto, pela integralidade dos crimes que lhe foram imputados.
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