O francês Édouard Louis, um dos escritores mais esperados da Flip, participou de uma mesa de conversa junto ao repórter da piauí Thallys Braga e ao sociólogo e escritor José Henrique Bortoluci, neste domingo (13), na Casa de Histórias, uma parceria entre a piauí e a Netflix, em conjunto com a Janela Livraria e a editora Mapa Lab, na 22ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty. Com a casa lotada, os três conversaram sobre como a escrita autobiográfica pode ser uma porta de entrada e saída do passado.
Em Mudar: Método, Louis narra que, quando jovem, se submeteu às vontades da classe dominante para se encaixar na sociedade. “A burguesia me forçou a ser como ela, falar como ela. Não foi uma escolha, porque se eu não tivesse a linguagem deles eu não poderia ter ido embora, ter estudado e me graduado. Ou seja, passar de uma classe social a outra não é uma escolha estética, é uma questão de sobrevivência. Para os pobres, a língua opressora se torna uma condição de emancipação”, disse o escritor francês na Casa de Histórias. “Hoje eu tenho instrumentos da classe dominante, então posso lutar contra a violência de classe”, afirmou Louis.
Para José Henrique Bortoluci, autor de O que é meu, o que unifica as histórias de ambos os escritores é que o mudar de classe significa tornar-se bilíngue. “A mobilidade de classe faz com que a gente pense ‘o que faço com aqueles que ficaram?’”, questionou-se Bortoluci. Há custos materiais, além do simbólico, afirmou o escritor brasileiro, que marcam a vida de quem sofre a mobilidade de classe.
Em 2014, Louis chamou a atenção na França quando lançou o livro O fim de Eddy. O romance autobiográfico narra a infância e a juventude de Eddy Bellegueule (o nome original do escritor), cuja família vivia em uma pequena vila operária, cercada pela pobreza, e a rejeição que ele sofreu de seu pai por ser gay.
Além de O fim de Eddy, Louis já lançou no Brasil História da violência (Tusquets, 2020), que narra um estupro que sofreu, Quem matou meu pai (Todavia, 2023) e Lutas e metamorfoses de uma mulher (Todavia, 2023), que abordam, respectivamente, a vida de seu pai e de sua mãe, Mudar: Método (Todavia, 2024), obra que mergulha em temas como homofobia, vingança, diferenças de classe e relações familiares. Em setembro deste ano, lançou Monique se liberta.
Quando escreveu Monique se liberta, obra que narra um plano de fuga da mãe de Louis em busca de liberdade, ele entendeu como o livro poderia mudar para melhor a realidade dela. “Tem pessoas que não podem esperar. Esperar é um luxo burguês”, disse o escritor francês. Louis combinou que parte do lucro com as vendas da obra seria dela e que viajariam juntos. O passeio à Alemanha ocorreu há três anos. Até então, Monique nunca havia atravessado a fronteira da França. Ele relembrou que, quando chegaram ao hotel, sua mãe perguntou se podia usar as toalhas. Ela nunca havia se hospedado em um hotel nem frequentado teatro. “A violência de classe não diz somente sobre ter dinheiro e uma casa para morar, mas não ter a possibilidade de viajar, dormir em um hotel, ir ao teatro”, afirmou o escritor. “A dominação de classe é essa infinidade de pequenas despossessões”, concluiu.
O repórter da piauí e mediador da conversa Thallys Braga escreveu um ensaio para a edição de outubro da piauí no qual descreve o impacto que lhe causaram os livros do escritor francês Édouard Louis. O jornalista conta a sua própria história enquanto um garoto gay e pobre no bairro de Inhoaíba, na Zona Oeste do Rio de Janeiro.
Em O que é meu, o sociólogo e professor José Henrique Bortoluci parte de entrevistas realizadas com seu pai, que durante cinquenta anos foi motorista de caminhão, para contar a história recente do país e da própria família.
No ano passado, quando Bortoluci participava de sua primeira Flip, o pai dele, Seu Didi, era levado em uma ambulância para o hospital. Ele tinha um câncer de intestino e precisou fazer uma cirurgia de emergência. “Paraty vai ficar marcada para sempre na minha vida. Aquele foi o último momento em que falei com meu pai no tempo presente”, revelou aos participantes da mesa. Quando Didi estava passando pelo tratamento de câncer, o escritor fez sessões de leitura de sua obra a ele, que nunca havia lido um livro na vida. A obra foi toda escrita no período de tratamento de câncer dele. “O meu pai narrava a própria vida com a sombra da morte muito próxima”, disse Bortoluci. “Hoje eu entendo que essa leitura para o meu pai não é algo suplementar, mas é parte do próprio projeto do livro. Depois de ouvir suas histórias e processá-las literariamente, essa era também uma parte desse projeto que se iniciou com o ato de coragem do meu pai de dar seus relatos.”
Leitores já perguntaram a Bortoluci quando escreverá um livro sobre a mãe – e ele responde, brincando: “para ela eu faria um reality show.” Atualmente, o escritor se dedica à história de leitura no seu contexto familiar.
Hoje, dez anos após o lançamento do primeiro livro, Édouard Louis é um escritor respeitado em todo o mundo, tem um apartamento em Paris e auxiliou a mãe a mudar de vida. Sobre isso, Thallys Braga lhe perguntou se ele se sente capaz de apreciar a paisagem ao redor ou se está em fuga, em busca de algo. Louis deu alguns segundos de pausa e respondeu “ça va” (tá indo), arrancando gargalhadas do público. Mas ele pontuou que a trajetória para chegar aonde está, perpassando a mobilidade de classe, trouxe consigo a melancolia – e é esse um grande tema de suas obras. “Percebi que há uma desigualdade de classe mesmo na melancolia: o pobre melancólico se queixa, o rico faz poesia.”
Louis terminou o primeiro grande ciclo de sua obra, que fala sobre a família, ao lançar no início deste mês, na França, um livro sobre o irmão (ainda não publicado no Brasil). Na Casa de Histórias, ele revelou ao público que agora irá começar um novo ciclo, abordando temas como o amor, a amizade e a homossexualidade. “É porque sou gay que encontrei as pessoas com que convivo. A homossexualidade foi a maneira de inventar a minha vida e de explorar o mundo. É uma viagem social.”