O que você realmente sabe sobre o Haiti?

O que a jornalista Selam Gebrekidan sabia a respeito da independência do Haiti era o que lhe fora ensinado na escola: em 1804, os haitianos escravizados expulsaram seus senhores franceses e assumiram o controle do país. Gebrekidan e o resto do mundo também sabiam que a França exigiu que os haitianos indenizassem seus antigos senhores de escravos por conquistarem a liberdade, ou enfrentariam uma guerra. O que se desconhecia era o valor exorbitante dos pagamentos e a relação direta que eles tinham com as mazelas que o país enfrenta atualmente. 

Então, em 2022, Selam Gebrekidan e outros três jornalistas do New York Times se debruçaram sobre milhares de documentos para calcular o montante pago pela ilha caribenha à França, e o impacto disso na economia haitiana. A série de cinco reportagens resultado desta investigação foi um dos assuntos discutidos por Gebrekidan na manhã deste sábado (6), na mesa de abertura do 9º Festival piauí de Jornalismo.

O evento deste ano tem como tema A contra-história – repórteres que bagunçam os mitos nacionais. Entrevistada pelo editor da piauí Guilherme Henrique e a editora-chefe da BBC News Brasil Flávia Marreiro, Gebrekidan contou que a reportagem sobre o Haiti não foi concebida como um projeto investigativo: “Talvez os editores tenham imaginado quantas 

descobertas nós faríamos a partir dos documentos. Nós, repórteres, não imaginamos.” Gebrekidan e seus colegas perceberam o potencial revelador da pauta quando o governo francês negou os primeiros pedidos de acesso à documentação. 

O Haiti foi o primeiro e único país obrigado a pagar reparações aos antigos colonizadores e seus descendentes. Apurada ao longo de dezoito meses, a reportagem do New York Times apresenta um cálculo inédito: a economia haitiana foi lesada em um montante entre 21 e 115 bilhões de dólares, o que ajuda a explicar a miséria nunca superada do país. Com o dinheiro que enviou à França, o país poderia ter investido em escolas, hospitais, estradas, indústrias e num sistema de água encanada para toda a população.

Os editores do Times previram uma série de críticas que poderiam receber de historiadores. Por isso, tiveram o cuidado de não tratar a reportagem como um furo jornalístico. “Não dava para dizer que as informações que tínhamos eram exclusivas, considerando que pesquisamos em arquivos que os historiadores já conheciam”, disse Gebrekidan. “Mas deixamos claro para o leitor que tínhamos algo novo para adicionar à história: a quantia que o Haiti perdeu por causa da dívida com a França.” Alguns historiadores não gostaram do projeto. Gebrekidan sabe que a academia tende a duvidar dos métodos de trabalho dos jornalistas. “Eu teria prestado mais atenção nas críticas se elas tivessem vindo de historiadores haitianos”, disse. Gebrekidan, no entanto, corroborou a crítica de alguns historiadores acerca da ausência de crédito a alguns estudiosos que já publicaram sobre o tema.

Em outras quatro reportagens, Gebrekidan e seus colegas narram como um banco francês drenou as contas do Haiti e ajudou a financiar a construção da Torre Eiffel, a destituição do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, que ousou pedir uma indenização às autoridades francesas, e a influência de Wall Street na ocupação dos Estados Unidos no Haiti no início do século XX.

Questionada se acredita ser possível fazer uma reportagem investigativa como a do Haiti hoje, no segundo governo de Donald Trump, Gebrekidan respondeu: “Para manter o meu emprego, eu diria que sim. Mas, na verdade, não acho que seja possível. Não por causa do Trump, mas porque há muitas notícias quentes para escrever. Há uma guerra na Ucrânia, outra em Gaza. Os investimentos do Times e o tempo dos repórteres estão concentrados no que há de mais urgente.”

Hoje, Selam Gebrekidan é correspondente do New York Times em Hong Kong. Ela nasceu na Etiópia e já morou em Londres e nos Estados Unidos. Em 2019, viajou à terra natal para cobrir um acidente aéreo que deixou 157 mortos em um voo da Ethiopian Airlines. Gebrekidan foi ao enterro coletivo e descobriu que, em vez dos restos mortais, as autoridades deram aos parentes das vítimas um punhado de terra queimada do local do acidente. A revelação irritou o governo etíope, que expulsou Gebrekidan e proibiu seu retorno ao país. “Eu nunca fiquei tão insegura fazendo uma reportagem”, disse. 

Tendo nascido na Etiópia, Gebrekidan sempre se sentiu uma estranha em outros países. Também se sentia uma outsider quando voltava para casa. “Eu não sonho mais na minha língua materna, só em inglês”, disse. Mas ser impedida de entrar no lugar em que nasceu não foi algo que ela previra. Os pais continuam morando na Etiópia, e Gebrekidan não pode visitá-los. 

Entre os trabalhos que produziu ao longo de uma década de carreira, Gebrekidan se orgulha mais da cobertura sobre a entrada de imigrantes na Europa. Ela entrevistou várias mulheres que foram escravizadas pelo Estado Islâmico na Líbia, conseguiram fugir e construir uma nova vida. “Eu dormi no mesmo colchão e comi a comida que elas comiam por semanas”, disse. “É estranho dizer isso, mas, ao ouvir o drama das pessoas, você acaba absorvendo-o. Como jornalista, você pode tentar ser neutro e objetivo, mas essa parece uma escolha cruel quando as pessoas estão compartilhando tanto da vida delas com você.”

Os mediadores perguntaram em qual reportagem Gebrekidan investiria seus recursos se tivesse todo o dinheiro do mundo. “Não sei como responder. O tempo me ensinou que liberdade demais não é saudável”, disse, rindo. “Acho que eu investiria o dinheiro no trabalho dos meus colegas jornalistas que não têm recurso para fazer o seu trabalho.”



Piauí Folha

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