Em agosto de 2012, Neuza de Fátima Santos foi até uma agência do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) em Caiapônia, cidade do interior de Goiás. Queria se aposentar como trabalhadora rural, já que tinha chegado aos 55 anos, idade mínima para a aposentadoria de mulheres que trabalham no campo. Santos, no entanto, não conseguiu comprovar o tempo de contribuição exigido por lei e teve o pedido negado. Ela recorreu, então, à Justiça Federal. Novamente, o pedido foi recusado, dessa vez por um motivo elementar: a aposentadoria rural é um benefício voltado para trabalhadores pobres do campo, e Santos, embora trabalhe no campo, está longe de ser pobre. É uma pecuarista que, junto com o marido, possui uma fazenda de 256 hectares com 450 cabeças de gado.
Santos, porém, não desistiu da ideia. No mês seguinte, seu advogado, Fernando Destácio Buono, entrou com uma ação na Vara de Caiapônia pedindo que a cliente recebesse aposentadoria rural por invalidez, benefício concedido apenas a trabalhadores do campo comprovadamente pobres e incapazes de trabalhar devido a problemas de saúde. Foi quando a sorte da pecuarista começou a mudar. A perícia médica judicial concluiu, em 2018, que Santos tinha hérnia de disco na coluna, entre outras enfermidades, e era apta a receber o auxílio-doença, um benefício temporário. No ano seguinte, o juiz João Corrêa de Azevedo concedeu à pecuarista, enfim, a aposentadoria rural por invalidez que ela havia pedido. Santos, com isso, passou a receber do INSS pouco mais de um salário mínimo por mês.
O processo de Santos se soma a pelo menos outros 42 que foram abertos contra o INSS no Fórum da Comarca de Caiapônia e que contêm indícios de ilegalidades, detectados tanto pela Polícia Federal quanto pelo núcleo de inteligência do Ministério da Previdência. A maior parte das ações foi apresentada por dois advogados: Buono (que representou Santos) e seu sócio, Gilson Garcia de Paula, que é casado com uma servidora do INSS em Caiapônia. A investigação indica uma série de irregularidades. Por exemplo, um mesmo comprovante de endereço foi usado por várias pessoas que solicitavam aposentadoria (muitas das quais sequer moravam na região) e as mesmas testemunhas participaram de diferentes ações (uma delas chegou a ser ouvida em quinze processos).
É possível, no entanto, que haja muito mais do que 43 processos com irregularidades. Afinal, de 2015 a 2019 o Juizado de Caiapônia – que atende também as cidades de Doverlândia e Palestina de Goiás – virou uma fábrica de ações previdenciárias. Foram 4 mil novos processos apresentados por ano, segundo o Tribunal de Justiça de Goiás, embora nas três cidades residam apenas 26 mil pessoas. Em outras comarcas de mesmo porte em Goiás, o número de novas ações por ano não chegou a duzentas nesse mesmo período.
Além dos endereços e testemunhas repetidas, havia outras peculiaridades. A investigação mostra que Gabriela Maria de Oliveira Franco, que na época era juíza na Vara de Caiapônia, indicava sempre os mesmos três médicos peritos para analisar os pedidos de aposentadoria, embora o tribunal tivesse outros profissionais à disposição. O trio concedia laudos favoráveis ao paciente 90% das vezes. Em alguns casos, o médico que fazia a perícia era o mesmo que já havia examinado o paciente e assinado o laudo que foi apresentado à Justiça para tentar o benefício – um claro conflito ético vedado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), mas que não despertou qualquer reação por parte da juíza. A Vara de Caiapônia, assim como seus médicos, era excepcionalmente generosa: segundo o INSS, Buono e Gilson de Paula foram vitoriosos em 52% dos processos que apresentaram entre 2015 e 2019 (a média no Brasil, no mesmo período, foi de 13,3%).
A confiança na Justiça era tão grande que, a certa altura, Buono decidiu ingressar com pedidos de aposentadoria por invalidez em favor do pai e dos sogros. Como demonstrou mais tarde a investigação do INSS, nenhum deles preenchia os requisitos para obter o benefício. Roberto Buono, pai do advogado, morava em Fernandópolis (SP), a mais de 500 km de distância de Caiapônia, e trabalhava como caminhoneiro – o que, para o INSS, é prova de que seus problemas de saúde não eram graves a ponto de impedi-lo de trabalhar. Os sogros, Valdevir e Ivone Garcia, também moravam longe, em Cassilândia (MS). A Justiça, ainda assim, concedeu aposentadoria à família toda. Valdevir, depois de aposentado, ainda renovou sua carteira de habilitação sem que nela constasse qualquer restrição médica, como seria de esperar em se tratando de alguém com um problema grave de saúde.
Quem primeiro suspeitou das irregularidades foi o juiz Ronny André Wachtel. Ele assumiu a Vara de Caiapônia em 2020 no lugar de Gabriela Franco, que trocou a magistratura por um cartório de notas em Votuporanga (SP). Em um relatório entregue à PF naquele ano, Wachtel listou as 43 ações judiciais previdenciárias que, a seu ver, causavam “estranheza”. Havia de tudo: falta de exames médicos nos pedidos dos advogados, pessoas com renda muito superior aos parâmetros dos benefícios previdenciários (como arrendatários de terras, donos de farmácias e açougues) e decisões que concediam aposentadoria por invalidez quando os laudos médicos recomendavam não mais do que um auxílio-doença.
Demorou dois anos até que a PF abrisse um inquérito, em janeiro de 2022, para apurar se advogados, médicos peritos e servidores da Vara de Caiapônia cometeram o crime de estelionato. Relatórios do Conselho de Controle de Atividade Econômica (Coaf) apontaram como suspeitas algumas transações nas contas bancárias de Fernando Buono e de sua mulher, Suelen Garcia. Em apenas seis meses, em 2020, ele repassou para ela 2 milhões de reais, quantia que, segundo o Coaf, não condiz com a renda do casal. Suelen possuía uma frota de veículos avaliada em 3,7 milhões de reais, incluindo três caminhonetes Dodge Ram, dois carros da BMW e um Porsche. A boa vida era exibida nas redes sociais da dupla, que registrou corridas de Porsche em autódromos no interior de São Paulo, viagens a Paris, Londres e Nova York, com direito a tragadas em charutos Cohiba, considerados os melhores do mundo (uma caixa com dez unidades não sai por menos de 10 mil reais).
O relato do juiz Wachtel acendeu um sinal de alerta, sobretudo porque Buono já acumulava alguns atritos com a lei. Antes de ser investigado pelos processos previdenciários em Caiapônia, o advogado já tinha respondido a três inquéritos por estelionato e apropriação indébita. Entre 2008 e 2010, quando ainda era estagiário no escritório do advogado Luís Henrique Lopes, Buono foi acusado pelo chefe de enganar ao menos cinco clientes, exigindo o pagamento de honorários que já haviam sido pagos. Uma das vítimas foi a aposentada Sebastiana Timótea Teixeira. A Polícia Civil instaurou inquérito para investigar o advogado, mas tempos depois a própria vítima retirou a queixa e o caso foi arquivado.
Em 2017, Buono foi acusado de embolsar 100 mil reais da aposentadoria de dois menores de idade com deficiência intelectual. Poucos dias depois de as mães registrarem ocorrência na Polícia Civil contra o advogado, causando a abertura de dois inquéritos por apropriação indébita, ele ingressou com uma ação judicial informando que havia procurado ambas para entregar o dinheiro, mas que não conseguiu encontrá-las. O delegado de Caiapônia, Ramon Queiroz Rodrigues da Silva, acreditou na versão de Buono e arquivou os dois inquéritos.
Mais recentemente, em maio de 2023, o advogado foi investigado pela Polícia Civil por falsificação de documento. Ele e Marcos Borges Silva, seu sócio até então, entraram com uma ação na Justiça pedindo aposentadoria para uma senhora chamada Valmir Correia Pinto Alves. Para embasar o pedido, a dupla apresentou uma procuração assinada por Alves em fevereiro de 2022. Ela, no entanto, nega ter assinado o documento e diz que nunca autorizou o pedido de aposentadoria. Por isso, procurou a polícia. O caso, porém, não deu em nada. Em junho do ano passado, sem ter sequer convocado um perito para analisar a assinatura de Alves, o delegado Ronaldo Pinto Leite, subordinado a Ramon Silva, em Caiapônia, arquivou o inquérito. Depois disso, o Ministério Público entrou na jogada e solicitou uma perícia, que até julho deste ano ainda não havia sido concluída.
A investigação aberta em 2022 pela Polícia Federal levanta a suspeita de que os processos em Caiapônia, além de beneficiar quem se aposentou irregularmente, renderam dividendos a Buono e sua mulher. Alguns indícios sugerem isso. Primeiro, o enriquecimento inexplicado do casal. Segundo, a forma como Buono repassou aos clientes o valor retroativo de suas aposentadorias (quando alguém conquista na Justiça o direito a um benefício previdenciário, é comum que o juiz determine o pagamento de valores retroativos, que contam a partir do momento em que a pessoa teve seu pedido negado pelo INSS).
O juiz Ronny Wachtel, ao constatar a “estranheza” dos processos, pediu aos advogados que comprovassem o repasse do dinheiro aos recém aposentados. Buono, num primeiro momento, apresentou apenas recibos assinados pelos clientes, a maioria deles pobres, alguns semianalfabetos. Wachtel reforçou que era preciso ter os comprovantes de transferência, e não só os recibos. Quando o advogado apresentou, enfim, os comprovantes, o juiz notou que as transferências haviam ocorrido meses depois de a Justiça ter liberado o dinheiro. Não havia uma explicação para aquela demora. Ele também achou estranho quando Buono disse que, em muitos casos, repassava o dinheiro em espécie para os clientes. Em um dos relatórios que apresentou à PF, Wachtel observou que isso era “anormal, pois, para tanto, [Buono] teria de sacar, em muitas oportunidades, centenas de milhares de reais”, já que “somente nos meses de dezembro [de 2020] e janeiro [de 2021], foram expedidos em torno de trezentos alvarás de levantamento de dinheiro em ações previdenciárias”, grande parte das quais tinha a atuação do advogado.
O relato de Wachtel, no entanto, assim como todas as outras evidências colhidas na investigação, foram engavetadas. No fim do ano passado, a Polícia Federal concluiu o inquérito sem cumprir nenhum mandado de busca e apreensão. Não houve indiciamentos, e a juíza Gabriela Franco, que estava à frente da Vara de Caiapônia quando aconteceram as suspeitas de irregularidades, sequer chegou a ser investigada. Procurada, a assessoria da PF em Goiás não se manifestou. Franco também não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem (ao ser contatada, ela bloqueou o número do repórter no WhatsApp).
Fernando Buono, por sua vez, negou ter cometido qualquer desvio de conduta. “Quando [a polícia] arquiva é porque não existe nenhuma irregularidade. Confirmado pela própria Justiça que não existiu nenhum ilícito”, ele respondeu por WhatsApp, a respeito da investigação da PF. O advogado disse que jamais reteve recursos de beneficiários do INSS, como sugeriu a investigação. No caso dos dois menores de idade, Buono disse ter depositado os valores em juízo porque, segundo ele, uma das mães não informou a conta bancária do filho e a outra se recusou a receber o dinheiro. O advogado também negou qualquer envolvimento com Valmir Alves, que o denunciou por falsificação de documento. “Essa cliente não me conhece e eu não a conheço, porque quem cuidou disso foi um outro advogado do meu escritório.” Sobre o caso de Sebastiana Teixeira, que o acusou de ter cobrado honorários indevidos, Buono nada comentou. “Não tenho nada de errado. Nenhum processo em andamento, ou que eu tenha sido condenado a alguma coisa”, concluiu.
O advogado Gilson Garcia de Paula, responsável por alguns dos processos que tinham indícios de irregularidades em Caiapônia, também negou ter cometido qualquer infração. “Sempre trabalhei honestamente, sempre tive ética e respeito com os processos em que eu atuo. Essa denúncia [do juiz Wachtel, que embasou a abertura do inquérito] foi infundada e irresponsável, feita pelo magistrado que suspeitou que poderia ter alguma fraude em ações previdenciárias na comarca, porém sem nenhum indício legal, o que foi comprovado pela investigação feita pela Polícia Federal, que perdurou mais de quatro anos”, ele disse.
O INSS estima que teve um prejuízo de 1 milhão de reais com as 43 decisões judiciais da Vara de Caiapônia. A piauí perguntou ao Ministério da Previdência Social se a pasta pretende tomar providências na Justiça, exigindo, por exemplo, a devolução dos valores que considera terem sido desviados. Não houve resposta até a publicação desta reportagem.