O Dia da Dependência e a condenação do ex-presidente

O STF marcou o julgamento de Jair Bolsonaro e da cúpula civil-militar do plano golpista de 2022 para o período logo antes e logo depois de uma data fundamental no calendário de mobilizações da extrema direita brasileira: o Sete de Setembro. Desse modo, o Dia da Independência, no último domingo, representou um desafio para as lideranças desse campo político: na tradicional manifestação na Avenida Paulista, em São Paulo, eles precisaram transmitir certeza e otimismo para os bolsonaristas, que se veem em um momento instável e negativo, carregado do que julgam ser injustiças contra sua maior referência política.

Diante da condenação do ex-presidente a 27 anos e 3 meses de prisão, em um julgamento ao qual ele assistiu no cárcere residencial, nenhuma outra imagem foi tão forte nessa maratona forense que a bandeira americana estendida sobre a multidão na Paulista, que em algumas dezenas de horas se tornaria um previsível banho de água fria.

Venho pesquisando manifestações da direita e da extrema direita há dez anos e estive mais uma vez no Sete de Setembro da Paulista. 

Sintomático da dificuldade em inspirar confiança foi a recepção a uma fala de Tarcísio de Freitas (Republicanos) no carro de som. Depois de se dizer convicto de que “a justiça será restabelecida”, o governador de São Paulo, provável candidato à presidência em 2026, arrematou: “o bem sempre vence o mal”. Ao meu lado na avenida, uma mulher reagiu espontaneamente: “espero que sim”. Esperança não é certeza: ela não estava plenamente segura de que o desfecho político seria o mais favorável para o campo reacionário.

Para grande parte da esquerda, a imagem que sintetizou o Sete de Setembro da extrema direita foi a do bandeirão dos Estados Unidos que a multidão estendeu na frente do Museu de Arte de São Paulo, em contraste com uma bandeira do Brasil, muito menor, posicionada ao seu lado. Em memes e postagens virais, essa imagem era apresentada em oposição ao Grito dos Excluídos e Excluídas, manifestação organizada por movimentos sociais e populares. Seria a demonstração flagrante da contradição dos autointitulados “patriotas” que, em pleno Dia da Independência, assumem sua dependência em relação aos Estados Unidos. Contudo, aquela precisa e preciosa foto aérea não esgota todo o sentido da manifestação bolsonarista. É preciso estar mais rente ao chão para observar a dinâmica do protesto e, assim, explorar as suas múltiplas camadas de significado. Elas se desdobram em conexões com o passado, o presente e o futuro do processo político brasileiro.

A série histórica de protestos no Sete de Setembro nos ajuda a acompanhar as placas tectônicas que estão sempre se movendo no campo reacionário.

O ano de 2021 foi um importante ponto de virada na apropriação simbólica do Dia da Independência pela extrema direita. Foi naquele Sete de Setembro que Jair Bolsonaro chamou Alexandre de Moraes de “canalha”, discursando para uma massa de centenas de milhares de manifestantes que, em uníssono, responderam gritando “eu autorizo” – senha para a autorização de uma “intervenção militar”. Ficou evidente então que aquela multidão não aceitaria como legítimo nenhum resultado eleitoral que não fosse a vitória de Bolsonaro.

No ano seguinte, o ato do Bicentenário da Independência na Paulista foi um comício sui generis. A campanha eleitoral alterou a dinâmica do protesto, com candidatos de direita e extrema direita a deputado federal e estadual distribuindo panfletos e santinhos, sem questionar as urnas eletrônicas. Havia formas dissonantes de construir o sentido do protesto. O carro de som monarquista insistia no caráter de festa cívica e de homenagem às virtudes (religiosas, políticas, intelectuais) identificadas no antigo regime político. E um grupo minoritário, composto por intervencionistas e integralistas, antecipava o horizonte de ação coletiva do campo reacionário até o fim do ano: a demanda por um golpe militar diante de uma eleição vista a priori como “fraudada”.

Em 2023 só houve protestos da esquerda no Sete de Setembro. De ressaca com os desdobramentos políticos, policiais e judiciais do 8 de janeiro, a extrema direita nem sequer tentou convocar um ato. Os bolsonaristas até retornaram às ruas na virada de novembro para dezembro, mas foram atos minúsculos. A extrema direita só voltou a fazer manifestações expressivas em fevereiro de 2024, ano de eleições municipais. A unidade do campo reacionário, porém, cindiu-se em São Paulo: enquanto Bolsonaro apoiava a reeleição do prefeito Ricardo Nunes (MDB), sua base social se rebelou contra sua liderança política, migrando seu voto para o candidato Pablo Marçal (PRTB). Impedido por Malafaia de subir no carro de som naquele dia, Marçal fortaleceu, a baixíssimo custo, sua marca de outsider entre outsiders. Seus símbolos – os bonés azuis com a letra “M” e os adesivos com o número de seu partido – eram onipresentes por toda a Paulista.

O que é possível concluir deste breve histórico dos atos de Sete de Setembro? Duas variáveis estão em jogo, uma mais interna e outra mais externa: o grau de unidade no interior do campo político direitista, com agendas divergentes ou atores que ameaçam fragmentá-lo, contestando a hegemonia de Bolsonaro, e o grau de conflito autoritário com o Poder Judiciário, o sistema eleitoral, as urnas eletrônicas e a democracia representativa. Essas tensões no campo reacionário se transformaram em 2025.

Logo no início do ato do último domingo, pude observar as pessoas gritando a plenos pulmões: “Lula, ladrão, seu lugar é na prisão.” Entoado neste momento, o grito carrega um contraste irônico entre Lula, hoje de volta ao centro da política brasileira depois de 580 dias de prisão, e Bolsonaro, que àquela altura já deslizava rumo à condenação ao regime fechado por crimes de golpe de Estado e de tentativa de abolição violenta do estado democrático de direito. Tanto a base social quanto as lideranças políticas da manifestação estavam agindo como se a palavra de ordem “volta, Bolsonaro” – uma senha para a sua candidatura a presidente em 2026 – fosse exequível, a despeito de sua condenação e prisão iminentes e de sua inelegibilidade já decretada pelo TSE.

A eventual “descondenação” de Bolsonaro passa pela campanha por uma anistia cujo verdadeiro beneficiário não são os presos do 8 de janeiro, e sim o ex-presidente. Desde a virada de 2023 para 2024, o pastor Silas Malafaia se engajou na construção de tal campanha, que ambiciona cumprir várias funções: elaborar o luto pelo golpe militar frustrado de 2022, superar a paralisia pós-8 de janeiro, proteger Bolsonaro da prisão e, eventualmente, recolocar o bolsonarismo, hoje na defensiva, em uma postura ofensiva.

Para que o fim da anistia seja alcançado, diferentes meios foram aventados no ato de Sete de Setembro. O primeiro caminho é interno à política institucional. Quem melhor formulou essa saída foi Valdemar da Costa Neto. “Nós vamos aprovar a anistia”, disse o presidente do PL no carro de som na Paulista, em um discurso permeado pela soberba. Ele buscou assegurar os manifestantes de que Bolsonaro será “o nosso candidato” na próxima eleição presidencial, enumerando as bancadas que seriam favoráveis à anistia no Congresso: “PL, PP, União Brasil, PSD.” “Nós temos a maioria”, concluiu, triunfante.

O segundo caminho aponta para a ação coletiva por fora das instituições para pressionar o Congresso a votar a anistia e recolocar Jair Bolsonaro no jogo político-eleitoral. Sob essa perspectiva, coloca-se em xeque a certeza de que a anistia estaria assegurada e identifica-se os presidentes da Câmara e do Senado como os entraves para o “volta, Bolsonaro”. Presenciei uma conversa relacionada ao tema, entre dois homens. Um deles comparou a “perseguição” a Bolsonaro aos inúmeros processos judiciais enfrentados por Gleisi Hoffmann (PT) e Renan Calheiros (MDB): “o nosso processo anda, o deles não.” O segundo homem afirmou, com veemência: “só vai funcionar com greve geral ou com os deputados e os senadores.” Seria necessário, além da “greve geral”, orquestrar uma campanha para constranger os presidentes da Câmara, Hugo Motta (Republicanos), e do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil), a encaminhar o projeto da anistia. A sugestão do manifestante era chamar, por WhatsApp, os correligionários de João Pessoa, cidade de Motta, e Macapá, base de Alcolumbre, a irem às ruas pela causa.

A política extra-institucional pode tomar outras formas. Ao final desta conversa informal, um dos homens se virou para duas mulheres ao seu lado e perguntou se elas estavam munidas de batom. “Batom é um perigo”, disse – referência a Débora Rodrigues dos Santos, a cabeleireira que, no 8 de janeiro, escreveu “Perdeu, Mané”, com batom, na estátua A Justiça, na frente do STF. As ações diretas de profanação dos símbolos de poder no 8 de janeiro foram precedidas, em novembro e dezembro de 2022, por táticas que flertaram de modo ainda mais explícito com a violência política – como as interdições de estradas por caminhoneiros e a bomba que se planejava detonar em Brasília. O desejo de empregar o sacrifício e a morte como instrumentos políticos reapareceu neste domingo. Já é uma tradição Malafaia encerrar seu discurso com o Hino da Independência. Desta vez, ele nem sequer precisou iniciar a cantoria. Por conta própria, os manifestantes entoaram de modo disciplinado: “Brava gente brasileira / Longe vá, temor servil / Ou ficar a Pátria livre / Ou morrer pelo Brasil.” Além disso, vi um cartaz praticamente idêntico a um que eu já tinha observado no ato de 16 de março de 2025, em Copacabana: “Lula faça como Collor: renuncie… Se possível, imite Getúlio.”

Quais serão as cenas dos próximos capítulos? Das duas, uma: ou a anistia já está encaminhada no Congresso, ou então é preciso pressioná-lo para que o processo avance. Fora dos gabinetes de Brasília, também haveria duas formas de libertar os golpistas. 

A primeira está nas mãos dos bolsonaristas: manifestações de massa, ações diretas ou até violência política. Desde a terça-feira, dia 9 de setembro, bolsonaristas mais radicais começaram a se apropriar nas redes sociais da revolta popular no Nepal como se pudesse ser um exemplo para derrubar a “censura” da “ditadura comunista”. O deputado federal Gustavo Gayer (PL) gravou vídeo dizendo que o Brasil estaria seguindo “o mesmo caminho” do Nepal. É um paradoxo: se ações dos manifestantes nepalenses como queimar o Congresso e a Suprema Corte se tornarem efetivamente uma inspiração (como foi o caso da revolta no Sri Lanka para o 8 de janeiro), revela-se como é oco o clamor da campanha por anistia como meio para “pacificar” o país.

A outra forma de chantagear os Poderes Legislativo e Judiciário pode vir de um “por fora” elevado à enésima potência: a agressão estrangeira. As bandeiras dos Estados Unidos sempre estiveram presentes nos protestos da extrema direita, junto com as de Israel. Desde o tarifaço anunciado por Trump em julho, politicamente motivado para proteger Bolsonaro da condenação, a quantidade de bandeiras cresceu, até chegar ao paroxismo do bandeirão ianque que se tornou a imagem mais marcante do Sete de Setembro reacionário.

É preciso, no entanto, entender os matizes desses símbolos e dos discursos que reivindicavam a intervenção imperialista dos Estados Unidos. Do alto do carro de som no último domingo, os oradores evitavam vender o governo Trump como a última esperança. Um deputado que não pude identificar chegou a afirmar que o “processo judicial” no STF “desrespeita a Nação” e que “os parlamentares que estão aqui são a última linha de defesa da nação”. Em vez de apostar na salvação que viria de fora do país, esse argumento implica a resistência interna à “ditadura de toga”. Pode ser um cálculo político dos líderes, tanto por receio de processos legais por “traição à pátria” quanto pela possibilidade de minar a credibilidade do patriotismo da extrema direita. Sóstenes Cavalcante se viu obrigado a repetir praticamente a mesma frase dita por Guilherme Boulos no comício nacionalista das esquerdas de 10 de julho: “Nós somos os patriotas de verdade.” Só essa fala do líder do PL na Câmara basta para provar que o nacionalismo, antes uma propriedade exclusiva da direita, passou a ser um campo contestado e disputado.

Se as lideranças políticas não reivindicaram o novo patamar intervencionista – em 2022-23, a intervenção era interna e militar; agora passou a ser externa, podendo deslizar de comercial a militar dependendo do grau de agressividade trumpista –, a base social do protesto levou cartazes com discursos reveladores. No início do ato, me deparei com os seguintes dizeres: “Trump! Save Brasil from tyrants!! We don’t [want] our country to become like Venezuela. Thank you” (“Trump! Salve o Brasil dos tiranos. Não queremos que nosso país vire a Venezuela. Obrigado”). Já voltando para casa, fotografei um cartaz com as cores da bandeira dos Estados Unidos – letras azuis e vermelhas sobre fundo branco – com esta mensagem: “Election without President Bolsonaro in 2026 is a coup! Thank you President Trump, Secretary Marco Rubio, Eduardo Bolsonaro and Paulo Figueiredo for defending democracy in Brazil” (“Eleição sem Bolsonaro em 2026 é golpe. Obrigado presidente Trump, secretário [de Estado] Marco Rubio, Eduardo Bolsonaro e Paulo Figueiredo, por defenderem a democracia no Brasil”). Por um lado, fica evidente como os bolsonaristas não enxergam contradição entre seu patriotismo e o clamor para que uma potência estrangeira salve sua nação. Por outro, essa política anti-institucional, com seu pedido para que o governo norte-americano agrida e chantageie as instituições brasileiras, é somente uma entre outras propostas para lidar com o dilema que o campo conservador enfrenta por causa da iminente prisão de sua principal liderança. 

Se a base social age como se a volta de Bolsonaro à urna eletrônica em 2026 fosse factível, me parece que as lideranças políticas estão tecendo neste momento cenários alternativos. A ordem dos três últimos discursos no carro de som auxilia a discernir agendas e desdobramentos possíveis.

Não me recordo de Tarcísio ser tão bem recebido em um ato bolsonarista como no último Sete de Setembro. Curiosamente, assim que começou a falar, a atenção dos manifestantes tendeu a se dispersar. Enquanto o governador paulista afirmava que “não existe independência sem liberdade” e que “esta festa está incompleta” devido à ausência de Bolsonaro, as pessoas começaram a conversar em círculos, alheias a seu discurso. Enquanto defendia que a esquerda “tenta o tempo inteiro reescrever a história” e que “não existe relação entre o 8 de Janeiro e Bolsonaro”, alguns bolsonaristas começaram a ir embora mais cedo. Surgiram algumas palmas quando Tarcísio disse que centenas de parlamentares são favoráveis à anistia, mas foram menos efusivas do que na sua recepção inicial. Pela segunda vez, vi seu discurso ser interrompido por motivos alheios. Em Copacabana, foi um paraglider que roubou a atenção do público; na Paulista, uma pessoa passou mal no meio da multidão e os manifestantes começaram a clamar pela presença dos bombeiros. Enquanto Tarcísio aguardava, em silêncio, a chegada do socorro, alguém puxou gritos de “fora Moraes”.

Logo depois do governador de São Paulo, foi a vez de Malafaia falar. O horizonte do encarceramento da principal liderança política da direita brasileira há quase uma década está sendo interpretado, como de costume entre os bolsonaristas, com uma lente religiosa. Daí a relevância da formulação sintética do pastor aliado de Bolsonaro: “Deus é especialista em transformar caos em bênção.” Amparada pelo episódio bíblico da vitória de Davi sobre Golias, a metáfora se concretiza: Moraes, dotado de “toga” e “poder”, é agente da “injustiça”, mas “o Deus todo-poderoso” vai derrotá-lo “no tempo certo”. Malafaia encerrou seu discurso da seguinte maneira: “Jesus Cristo é o Senhor do Brasil. O Brasil não vai virar a Venezuela. A paz e a prosperidade vão chegar, os injustos vão cair.” Ao contrário do ato anterior, de 3 de agosto, quando os manifestantes, desanimados, decidiram virar as costas para o pastor e voltar para casa mais cedo, desta vez a retórica de Malafaia foi capaz de animar a multidão. Ao fim da fala, os bolsonaristas bateram palmas e dançaram.

No momento mais relevante de seu show no carro de som, Malafaia enquadrou Tarcísio. Não o nomeou: referiu-se abstratamente à frase “Fulano é o candidato da direita em substituição ao Bolsonaro”, sob gritos e vaias dos manifestantes. “Quem tem que falar em nome do Bolsonaro é Michelle, Flávio e Carlos”, disse. Isto é, Tarcísio não é porta-voz imediato do campo reacionário, e Eduardo também foi desconsiderado. Por outro lado, Malafaia acenou para o governador paulista. Apresentou-se como “amigo” de Tarcísio e disse que, embora já lhe tenha feito críticas públicas e privadas, reconhece que “agora ele está sendo um leão pela anistia”. Ou seja: Tarcísio tem valor, mas deve ficar em seu devido lugar.

Michelle Bolsonaro fez o discurso de encerramento do protesto. Já durante a fala de Malafaia, observei as pessoas tentando se aproximar do carro de som para vê-la melhor. O mestre de cerimônia apresentou-a de forma grandiosa e emocionada: “Vamos ouvir a grande referência de mulher do Brasil.” Gritos de “Michelle!” tomaram a Paulista e os celulares subiram sobre as cabeças da multidão para tirar fotos da ex-primeira-dama.

Em contraste com o clima quase festivo da manifestação, marcada por uma espécie de negacionismo massificado acerca da iminente prisão de Bolsonaro, Michelle se pôs a falar com voz embargada, como que prestes a chorar. Ela alterou o tom do ritual coletivo. Referiu-se à facada que o marido sofreu na campanha de 2018, lembrou a manifestação de “1 milhão de pessoas” no Sete de Setembro de 2022 em Brasília, e descreveu a prisão domiciliar de Bolsonaro como uma “humilhação” e uma “violação” da Constituição. O discurso oscilou entre o sofrimento no presente e o triunfalismo no futuro. “Eu não queria chorar, mas está muito pesado”, confessou ela, descrevendo a sobreposição de suas tarefas, dentro e fora de casa, de mãe, esposa, amiga, religiosa e política. Mas logo a voz triste era superada: “A humilhação faz parte do processo e nós vamos sair mais fortes. A farsa e a mentira vão cair por terra. Deus vai mostrar quem são os inimigos da nação.” Nesse momento, alguém atrás de mim gritou “Amém!”. Michelle então arrematou: “A gente vai vencer, esta é a certeza que eu tenho..

“Quem era pra estar aqui era meu marido”, disse a presidente nacional do PL Mulher, lamentando a situação de Bolsonaro, “preso e amordaçado”. E então conclamou a multidão: “Não desistam, ele não vai desistir, eu não vou desistir.” Nessa frase simples e curta, Michelle Bolsonaro deslizou entre três sujeitos da ação, “vocês”, “ele” e “eu”, o que acaba constituindo um “nós” – o povo. “Vamos continuar lutando”, reiterou, no fim do discurso, para então chamar Malafaia de volta: “Vamos fazer um Pai Nosso, Silas.” Antes da oração, ela convidou todas as pessoas a darem as mãos. Um comando inteligente, pois produz e corporifica a unidade e a coesão do coletivo em situação de adversidade extrema.

Com uma unidade perfeita de forma e conteúdo, a modulação da voz de Michelle não foi apenas parte de uma performance. Ela fez uma estudada operação teológica. A alternância entre tristeza diante da derrota pontual – a prisão de Bolsonaro – e a certeza de que em breve virá a vitória divina encarnou a teodiceia do sofrimento característica das regiliões abraâmicas como o judaísmo e o cristianismo. A injustiça do presente será revertida e suplantada por uma redenção futura. A cereja do bolo foi sua opção por uma retórica do perdão no lugar da provocação bélica. Ela aventou a hipótese de Alexandre de Moraes “se arrepender”. Nesse caso, seria um milagre que “os corações de pedra se transformem em corações de carne”. E se há alguém que pode proporcionar tal milagre, seria justamente Deus. Um homem atrás de mim concordou, quase como se estivesse surpreso com a correção cristã da linha de raciocínio. Como se viu, o milagre não se cumpriu.

Os atos organizados por Malafaia no pós-8 de janeiro se caracterizaram por um carro de som unificado, que lhe deu o monopólio na rua dos meios de eletrificação dos discursos políticos, e por uma fusão híbrida de comício, protesto, culto e festival de música a céu aberto. O objetivo imediato destes rituais coletivos tem sido reproduzir a dependência do campo conservador em relação à família Bolsonaro, às vésperas de Jair ser preso. Com a sua saída da cena política, abre-se espaço para novas lideranças. Entre o carisma religioso e político de Michelle e a orientação tecnocrática (porém cada vez mais abertamente golpista) de Tarcísio, abre-se um abismo de estilos retóricos. O contraste entre esses perfis indica um conflito entre agendas e protagonismos ou uma promissora complementaridade? Sem Bolsonaro, poderá ser recriada a frente entre o bolsonarismo e o que Marcos Nobre chama, em artigo publicado na piauí de junho, de “a direita sem medo” de se aliar à extrema direita? Enquanto partidos como PSD, Republicanos e a federação PP-União Brasil não declararem independência do bolsonarismo e do seu projeto autoritário, a democracia brasileira permanecerá ameaçada e fragilizada.



Piauí Folha

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