A prisão cautelar domiciliar de Jair Bolsonaro, decretada na noite de 4 de agosto pelo ministro Alexandre de Moraes, da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), é resultado da postura peculiar que o ex-presidente passou a adotar em relação às determinações do ministro.
Quem recebe uma ordem judicial normalmente procura entendê-la, visando ao seu cumprimento. Mas Jair tem se esforçado para não entender, ou fingir não entender, as últimas restrições que lhe foram impostas por Moraes, escalando seu confronto com o Supremo. Essa é a parcela que lhe coube na empreitada familiar de tentar emparedar e coagir o Supremo: enquanto Eduardo alicia o governo Trump e Flávio procura trabalhar no Senado, Jair finge incompreensão de determinações judiciais para se fazer de desentendido e desafiá-las abertamente. Seu plano é provocar reações cada vez mais intensas da Justiça na tentativa de levar a disputa para o terreno que favorece mais a ele e menos ao tribunal: o conflito escancarado, virulento, com clima de insurreição. A família Bolsonaro hoje sonha com um ambiente social parecido com os dias anteriores ao 8 de janeiro de 2023.
Bolsonaro se convenceu de que ser um figurante bem comportado no palco da Justiça, posando de réu domesticado no interrogatório, não lhe trará grandes benefícios jurídicos. Ninguém se salva em uma ação penal com tantas provas contra si apenas porque tratou seu juiz por “Excelência” e respondeu educadamente às perguntas que lhe foram feitas. O aceno que o Supremo lhe fez com a prisão domiciliar de Collor, à qual também Bolsonaro poderia fazer jus se demonstrasse disposição de esfriar o conflito, foi recusado. Bolsonaro aparentemente concluiu que o figurino de réu adestrado o prejudica politicamente: fortalece a imagem de Alexandre de Moraes e do STF, desanima sua base, transmite mensagem de seu conformismo com o resultado negativo que todos sabem que virá e assanha o apetite dos políticos que aguardam seu ocaso para disputar seu espólio eleitoral. Jair aparentemente chegou à conclusão de que a barganha não vale a pena: os prejuízos políticos seriam máximos e os benefícios jurídicos, mínimos.
Juridicamente, não há muitas polêmicas na última decisão de Moraes, que deve ser referendada pela Primeira Turma do STF. Em um esforço incomum de evitar a decretação de uma prisão preventiva de Bolsonaro, Moraes vem há tempos buscando medidas menos gravosas do que a prisão para tentar garantir o bom andamento do processo e evitar que Jair se coloque à margem do alcance da Justiça. Qualquer outro investigado, fosse o magistrado Moraes ou qualquer outro, possivelmente teria sido preso após a inexplicável estada de Bolsonaro na Embaixada da Hungria durante o Carnaval de 2024, pois é evidente que o ex-presidente apenas buscava blindagem jurídica sob o manto da imunidade diplomática com o qual o regime de Viktor Orbán poderia cobri-lo. A hipótese para decretação de preventiva era clara, mas naquela ocasião foi Moraes quem se fez de desentendido, inclusive porque a decretação de uma prisão cautelar em momentos precoces não convém às investigações, que passam a trabalhar sob prazos legais muito curtos.
Mais recentemente, houve a incursão de Eduardo Bolsonaro pelos Estados Unidos, onde o deputado federal licenciado tem buscado, com sucesso, a imposição de sanções pesadas a Moraes, a seus colegas de tribunal e à economia do Brasil. A turnê anti-Brasil e anti-Supremo de Eduardo é confessadamente bancada por seu pai. Ora, em que outra situação um réu em ação penal poderia remunerar um lobista internacional para cavar sanções pessoais contra seu juiz e não ter sua prisão decretada? Também aqui Moraes deu a Bolsonaro a colher de chá que nenhum outro réu no Brasil receberia: em vez de mandá-lo para a cela, optou por impor uma série de medidas cautelares diversas da prisão, entre as quais o uso de tornozeleira eletrônica, a proibição de contato com embaixadas e embaixadores, a proibição de contato com o lobista internacional – que por acaso é seu filho – que trabalha para impor sanções a juízes brasileiros e a proibição do uso de redes sociais, por entender que Bolsonaro as usa em sua campanha de desafio e tentativa de intimidação do STF.
Sendo Bolsonaro um acusado que adota a confusão e o conflito como estratégia, essa última ordem, de proibição do uso de redes, acabou sendo um presente para ele. Além de amoldar-se à narrativa de violação à liberdade de expressão e de perseguição às redes sociais, a determinação para que Bolsonaro sumisse das redes era facilmente desafiável por um ex-presidente com um séquito preservado de apoiadores fervorosos usando tornozeleira eletrônica. Consciente de seu poder comunicacional, Bolsonaro sabia que a exibição do aparelho em tom de indignação acenderia um rastilho de pólvora que tomaria conta das redes, gerando conteúdo viral com potencial inflamatório contra Moraes e o tribunal. Moraes percebeu a tática e convocou Bolsonaro para esclarecimentos, advertindo-o que ninguém é bobo, muito menos a Justiça. Jair e seus filhos então dobraram a aposta: no domingo, o ex-presidente participou, por meio das redes sociais de seu filho Flávio, do protesto em seu favor em Copacabana. Gravou vídeos e imagens exibindo a tornozeleira eletrônica com sua conhecida estética verde e amarela, para posterior disseminação pelas redes de sua prole e de seus apoiadores.
Qualquer que seja a opinião que se tenha sobre a restrição que havia sobre o uso de redes sociais por Bolsonaro, é inequívoco que essa restrição existia e que seu teor, ainda mais após os esclarecimentos feitos por Moraes dias antes, proibia exatamente aquilo que Bolsonaro fez no domingo. O teor das falas do ex-presidente é secundário, pois ainda que sua mensagem não tenha se passado de uma saudação aparentemente inofensiva, ela se deu no contexto de um ato cuja pauta e propósito eram inequivocamente proibidas a ele. O argumento de que a restrição às redes sociais é excessivo tem pouco apelo neste caso específico, pois é sempre necessário lembrar que ela só foi imposta como alternativa à prisão preventiva, onde não haveria nem redes sociais, nem muitas coisas mais.
Ao mudar de estratégia e abandonar a persona de réu comportado e respeitador da autoridade do Supremo, Bolsonaro espera alterar o palco e o enredo de seu processo. Nos ritos judiciais, Jair, o réu recatado, é coadjuvante na história em que Alexandre de Moraes é personagem principal e grande vencedor. Mas nas ruas e nas redes, onde o espetáculo transpira revolta, contestação e desafio às autoridades, Bolsonaro volta a ser protagonista, figurando em primeiro plano no papel que lhe deu fama e que ainda explica a persistente força de sua liderança política; já Moraes torna-se apenas o vilão previsível.
Bolsonaro talvez conte com alguns desdobramentos dessa estratégia arriscada que lhe podem ser favoráveis no médio e no longo prazo. A manutenção da mobilização de sua base social e política aumenta a pressão nas ruas e na política contra o Supremo. Na Câmara, seus apoiadores pedem a votação do projeto de lei da anistia. No Senado, bolsonaristas fazem força para o andamento de pedidos de impeachment contra Alexandre de Moraes. Em pouco mais de um ano, eleitores irão às urnas para, entre outras coisas, renovar dois terços do Senado, em meio a uma campanha na qual o impeachment de ministros do Supremo será lema de candidatos a senador em todos os estados do Brasil. O eventual recrudescimento da pressão do governo Trump – não contra Moraes, que parece inquebrantável, mas contra seus colegas de tribunal, sob argumento, por exemplo, de que são apoiadores de um alvo da Lei Magnitsky – poderia ir no mesmo sentido de aumentar a fervura sob o tribunal e seus ministros.
Para Moraes, o risco é que essas ameaças latentes, tanto na frente da política interna quanto da política externa, enfraqueçam o cordão de isolamento que o protege dentro do STF, fazendo-o perder apoio entre seus próprios colegas de toga. Por mais admiração que tenham pela altivez e coragem do ministro relator das ações contra Bolsonaro, alguns de seus colegas podem simplesmente não estar dispostos a viver sob as restrições severas e penosas que uma rodada ampliada das tirânicas e invasivas sanções pessoais impostas pelo governo estadunidense poderia lhes acarretar. Como também podem não estar dispostos a pagar para ver o primeiro processo de impeachment contra um ministro do Supremo em nossa história. Temperança e coragem são espectros da virtude em permanente tensão.
Em um cenário em que mais ministros passem a fazer cálculos sobre o quanto vale a pena, para si próprios e para o Supremo, insistir em um conflito que só se agrava, a resistência de muitos colegas de Moraes a uma eventual anistia aprovada pelo Congresso – que seria julgada no Plenário e não na Primeira Turma – poderia diminuir, por exemplo. A única certeza que temos é que a contenda jurídica em torno do futuro de Jair Bolsonaro não se encerrará com sua condenação na ação penal da tentativa de golpe de Estado, cuja decisão, ainda mais após os últimos movimentos de Jair, não deve demorar, culminando com sua provável condenação e recolhimento à prisão em regime fechado, então por força de uma condenação criminal.