Kiki Mordi e a face do abuso sexual nas universidades africanas

Logo no início do documentário Sex For Grades, a jornalista nigeriana Kiki Mordi, de 34 anos, aparece pintando máscaras de plástico brancas. Com tinta preta, ela desenha formas geométricas idênticas em todos os exemplares, enquanto explica que esses objetos serão usados para proteger a identidade das testemunhas. “Quero que essas máscaras representem força, que representem poder”, diz ela.

Produzido pela BBC News África, o filme denuncia casos de assédio sexual em universidades da Nigéria e de Gana. Criadora da obra, Mordi afirma que o objetivo era preservar o rosto das vítimas e, em contrapartida, expor a face dos agressores. 

A explicação foi dada pela nigeriana neste sábado (6) durante o 9º Festival piauí de Jornalismo, realizado na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, cujo tema é A contra-história – repórteres que bagunçam os mitos nacionais

Na conversa mediada pelo repórter da piauí João Batista Jr. e a apresentadora Cristina Fibe, do Uol, Mordi falou sobre a dificuldade de denunciar os casos de assédio sexual e o papel da imprensa na cobertura da violência contra a mulher. “Não caia na armadilha de fazer um espetáculo com a vida das pessoas”, disse. “O jornalismo é um caminho para a verdade, não para se tornar celebridade.” 

O documentário revela como professores universitários usam sua superioridade hierárquica para abusar de alunas – o que inclui menores de idade (algumas entram para a universidade aos 17 anos) – oferecendo, por exemplo, aprovação nas disciplinas em troca de favores sexuais. A produção descreve a situação como “epidêmica” no Oeste africano, e os professores têm até um clube com um espaço reservado para as relações íntimas. Na Universidade de Gana, as agressões são tão frequentes que uma ONG composta por ex-alunos e voluntários oferece aulas de autodefesa para estudantes escaparem de situações desse tipo. 

Apesar de as denúncias serem recorrentes, nunca haviam sido tão bem documentadas – até a iniciativa de Mordi, que sofreu o mesmo tipo de abuso quando cursava Bioquímica na Universidade de Lagos, na Nigéria. (Ela abandonou o curso depois de ser abusada por um de seus professores.) Além da falta de estrutura e canais para denunciar casos similares, ela acredita que a “cultura de vergonha e silêncio” do país é um empecilho. 

Por mais de um ano, ela e sua equipe acompanharam jornalistas que passaram a frequentar duas das universidades mais prestigiadas da região para obter provas dos abusos. Além de câmeras escondidas para gravar os agressores, elas contavam com um “botão de pânico” e uma equipe à disposição para intervir, caso se sentissem inseguras. “Criamos essas ferramentas porque sabíamos que era perigoso.”

A crueza visual das imagens causa desconforto imediato. O filme mostra professores tocando nas alunas sem consentimento, forçando conversas obscenas e propondo aprovação nas disciplinas e admissões em troca de relações sexuais. Um deles, por exemplo, ameaçou que uma aluna não conseguiria se graduar caso recusasse as investidas. Outro chegou a trancar uma das cinegrafistas em sua sala. Usando a máscara branca que esconde a metade superior de seu rosto, Kemi, repórter que filmou o professor virando a chave da porta atrás de si, destacou o esforço de manter-se calma para concluir o trabalho jornalístico durante o momento de tensão. 

“Nós tínhamos que lembrar que não éramos aquilo que ouvíamos dos professores”, afirmou Mordi, ao falar sobre os desafios psicológicos da investigação. “Eu me sentia suja ao sair daquela sala.” O processo de admissão de estudantes no ensino superior nigeriano depende inteiramente dos professores, o que dificulta a denúncia por parte das alunas. “Você tem que se inscrever em cada curso separadamente, então tem que ir ao gabinete desses professores”, explicou ela. Essa relação desequilibrada de poder entre professor e aluna é um dos principais obstáculos que impedem a denúncia de mulheres. Elas têm consciência de que seus abusadores estão em posição de influenciar sua trajetória acadêmica e sua carreira. 

Arepercussão do documentário foi barulhenta, sobretudo no primeiro ano. O Senado nigeriano aprovou uma lei contra o assédio e o clube para onde os professores levavam as vítimas foi fechado. A Igreja do Evangelho Quadrangular colocou o Dr. Boniface Igbeneghu, um dos assediadores que atuava como pastor, em licença administrativa. Já a Universidade de Lagos o suspendeu. Além disso, mais estudantes se sentiram empoderadas e usaram as redes sociais para expor abusadores. “Eu não esperava toda essa reação. O documentário se espalhou como fogo”, contou Mordi.

Em paralelo, Mordi arrebatou o Prêmio Gatefield de Jornalismo Popular para a África 2019, o prêmio Michael Elliott de 2020, a presença na lista anual de 100 mulheres da OkayAfrica, além de uma indicação ao Emmy. Por outro lado, ela foi alvo de processos judiciais que ainda tramitam, seis anos após o lançamento do documentário. “Uma coisa é um professor te ameaçar, outra é o governo falar que vai punir”, ressaltou Mordi, que é cofundadora da Document Women, uma plataforma que se dedica a documentar histórias de mulheres. 

A jornalista falou do papel que a mídia tem de proteger as vítimas de agressão que aceitam contar suas histórias. “As redações têm o dever de protegê-las com o mesmo cuidado que têm com os repórteres”, disse. “O que nós precisamos mostrar mais é o rosto dos agressores. O debate tem que ser menos sobre a vítima e mais sobre o agressor. Em Sex for grades, nossa câmera estava 100% focada nos professores.” 

No documentário, Kiki Mordi expõe sua própria história de abuso na Universidade de Lagos. Enquanto revela o caso de outras jovens, elabora o próprio trauma – a ponto de desabar em lágrimas ao dar o seu relato. “Eu tento ser empática. Às vezes as vítimas precisam saber que não estão sozinhas.” O choro se repetiu durante o festival. 

Mas a própria jornalista recusa o papel de vítima. “Eles não podem me envergonhar porque eu me recuso.” No documentário, ela aparece na última cena enfrentando os abusadores. De pé, em direção à câmera, ela dá o recado que resume a intenção do seu trabalho jornalístico: “We are watching you” (“Nós estamos de olho em vocês”, em português). 



Piauí Folha

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