Com o tema A contra-história: repórteres que bagunçam os mitos nacionais, o 9º Festival piauí de Jornalismo, realizado no último fim de semana na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, recebeu repórteres e editores de quatro continentes. São nomes que vasculham o passado varrido para debaixo do tapete ou lidam com conflitos contemporâneos que têm na raiz questões de perspectiva histórica. Em comum, desafiam o poder em seus próprios países, e lidam com duras consequências.
Guerras, desinformação, perseguição judicial, violência, racismo, desigualdade social e outros temas foram abordados nos dois dias de evento.
Três dos quatro jornalistas entrevistados no sábado (6) não podem voltar ao país de origem como consequência das reportagens que publicaram desmentindo e apresentando uma versão distinta do discurso oficial. É o caso do russo Mikhail Zygar, que há três anos é considerado “agente estrangeiro”, está incluído na lista de procurados pelo Ministério da Justiça da Rússia e foi condenado a oito anos e meio de prisão. Tudo isso por ser uma voz crítica à presença das tropas russas na Ucrânia e por denunciar crimes de guerra cometidos na invasão militar.
“Fui condenado pelo crime de disseminar ‘notícias falsas’ ao denunciar crimes de guerra cometidos pelo exército russo na Ucrânia. Para o governo de Putin, não há uma guerra, há apenas uma operação militar. Logo, para o governo, não há crimes de guerra”, disse Zygar, que foi entrevistado no palco pelas jornalistas Consuelo Dieguez (piauí) e Patrícia Campos Mello (Folha de S.Paulo). Atualmente, ele vive em Nova York e dá aulas na Universidade Columbia. Leia mais aqui.
Outra jornalista exilada nos Estados Unidos é a chinesa Jiang Xue, repórter investigativa independente que, ao revirar a história oficial política e social chinesa, foi perseguida pelo governo de Xi Jinping e obrigada a deixar o país.
Na conversa com as jornalistas Thaís Oyama, do Globo, e Flavia Lima, coordenadora de diversidade da Folha de S.Paulo, a chinesa explicou que desde 2012, quando Xi Jinping assumiu o comando do país, a imprensa local tem tido uma liberdade editorial cada vez menor. Segundo ela, o partido comunista teme que falem a verdade sobre diversos temas nacionais, como a Revolução Cultural, a Grande Fome e a Covid.
Em uma reportagem publicada em 2019, Jiang Xue contou a história da Spark, uma revista criada por estudantes em 1960, durante a Grande Fome, que criticava as políticas do Partido Comunista e narrava a realidade de milhares de pessoas que morriam de fome no país. A revista só teve um número, pois foi logo censurada pelo governo. Jiang Xue saiu do país em 2022, admitiu que sente o desejo de voltar, mas que agora se sente ameaçada. “Sair da China não quer dizer que não quero mais voltar, mas procuro uma maneira de melhorar minha terra”, disse. Confira neste link como foi essa conversa.
Conversa inaugural do evento, a repórter investigativa do The New York Times Selam Gebrekidan falou sobre as perseguições que ela e sua família sofreram após a publicação de uma reportagem que revelava como a Ethiopian Airlines havia entregue terra queimada no lugar das cinzas aos familiares das vítimas de um acidente aéreo em março de 2019.
A repórter não vivia no país, mas voltou à terra natal para apurar a história. Suas matérias acerca de uma das principais estatais da Etiópia incomodaram o governo, que expulsou a jornalista. “Eu nunca fiquei tão insegura fazendo uma reportagem”, disse ela, que desde então não pode mais visitar os pais.
Na entrevista conduzida pelo editor da piauí Guilherme Henrique e a editora-chefe da BBC News Brasil, Flávia Marreiro, Gebrekidan também falou sobre a série de reportagens revelando como o Haiti foi explorado por França e Estados Unidos após conquistar sua independência, em 1804. Apurada ao longo de dezoito meses, o texto apresenta um cálculo inédito: a economia haitiana foi lesada em um montante entre 21 e 115 bilhões de dólares, o que ajuda a explicar a miséria nunca superada do país.
Apesar da grande repercussão da publicação, a jornalista admitiu que a reportagem incomodou alguns historiadores, que se sentiram desprestigiados por não terem sido citados como fonte e por acharem que o jornal tratou o assunto, que dizem ser amplamente debatido na academia, como uma grande novidade. O texto completo da mesa pode ser lido aqui.
Já a nigeriana Kiki Mordi falou sobre o documentário Sex For Grades, produzido pela BBC News Africa, que revela o modus operandi de professores que assediam sexualmente mulheres nas universidades africanas, sobretudo na Nigéria e em Gana.
Em conversa com o repórter da piauí João Batista Jr. e a apresentadora Cristina Fibe, do Uol, Mordi relembrou os bastidores da investigação. Por mais de um ano, ela e sua equipe acompanharam três jornalistas que passaram a frequentar duas das universidades mais prestigiadas da região para obter provas dos abusos. Além de câmeras escondidas para gravar os agressores, elas contavam com um “botão de pânico” e uma equipe à disposição para intervir, caso se sentissem inseguras. “Criamos essas ferramentas porque sabíamos que era perigoso.”
Durante o evento, ela relembrou como se sentia a cada encontro com os assediadores. “Nós tínhamos que lembrar que não éramos aquilo que ouvíamos dos professores”, afirmou Mordi, ao falar sobre os desafios psicológicos da investigação. “Eu me sentia suja ao sair daquela sala.”
Segundo Mordi, a repercussão do documentário estimulou a criação de uma lei já aprovada no Senado nigeriano contra o assédio, e um dos professores assediadores foi demitido da Universidade de Lagos. Em paralelo, mais estudantes se sentiram empoderadas para expor abusadores. Mordi angariou prêmios, honrarias e problemas com a justiça. Ela foi alvo de processos que ainda tramitam, seis anos após o lançamento do documentário. Leia mais aqui.
O domingo começou com uma análise dos conflitos entre Israel e Hamas e a destruição de Gaza promovida pelo governo de Benjamin Netanyahu. Relacionando contexto histórico e fatos contemporâneos, o publisher do jornal Haaretz, Amos Schocken, especulou que o prolongamento da crise na região pode corroborar uma ideia de extermínio do povo palestino. “Parece que a ideia é eliminar a população palestina, não realizar um objetivo militar”, disse Schocken em entrevista a André Petry, diretor de redação da piauí, e Ana Clara Costa, repórter da revista.
Schocken explicou que nos primeiros meses do conflito em Gaza, o Haaretz foi acusado de fazer propaganda em prol do terrorismo do Hamas por narrar a morte dos palestinos. O publisher viu o seu jornal sofrer sanções governamentais por contrariar o discurso oficial – Netanyahu proibiu agências estatais de publicarem anúncios no Haaretz e cancelou as compras de assinaturas para funcionários públicos –, mas não diminuiu o nível crítico da cobertura. Durante o evento da piauí, ele leu um trecho do editorial publicado naquele mesmo dia no Haaretz: “Só em agosto, mais de setenta pessoas foram mortas por dia pelas Forças de Defesa de Israel. (…) A maioria morreu quando suas tendas, casas ou ruas foram bombardeadas.”
O conflito em Gaza já matou mais jornalistas e profissionais de mídia do que qualquer guerra da história mundial, segundo levantamento da Watson Institute for International and Public Affairs. Nenhum deles do Haaretz. “Acho que ninguém aqui considera a possibilidade de um jornalista israelense ser assassinado. Israel não é a Rússia de Vladimir Putin”, afirmou Schocken.
A análise factual, mas da realidade brasileira, seguiu com a edição ao vivo do Foro de Teresina, podcast de política da piauí. Fernando de Barros e Silva, Celso Rocha de Barros e Ana Clara Costa analisaram os primeiros dias de julgamento no Supremo Tribunal Federal do ex-presidente Jair Bolsonaro e mais sete réus envolvidos na trama golpista. A sessão Kinder Ovo, em que os ouvintes adivinham de quem é a voz misteriosa de algum personagem da política brasileira, foi realizada com espectadores que estavam na Cinemateca.
Na sequência, o editor da piauí Luigi Mazza e a documentarista e artista visual Cassiana Der Haroutiounian entrevistaram o jornalista Pakrat Estukyan. Bioquímico de formação, Estukyan enveredou-se no jornalismo em 2007, quando seu amigo, Hrant Dink, foi assassinado a tiros em frente à redação do Agos, jornal que havia fundado e do qual era editor-chefe. Desde então, Estukyan assumiu a tarefa de continuar o legado do amigo e manter o jornal funcionando.
Nascido na Turquia, mas de origem armênia, Dink era um dos poucos jornalistas no país a tratar abertamente do genocídio cometido contra os armênios pelo Império Otomano, entre 1915 e 1923. O assunto é um tabu na Turquia, que até hoje não assumiu responsabilidade pela matança ocorrida há mais de cem anos. Por isso, o Agos virou alvo de ultranacionalistas turcos. O rapaz de 17 anos que matou Dink era um deles.
Apesar das ameaças e da antipatia expressa do governo turco, o Agos ainda consegue se manter de pé, publicando edições semanais. O jornal, de pequeno porte, é financiado pela família de Dink e, segundo Estukyan, tem uma tiragem de aproximadamente 4 mil exemplares por semana. Por meio de seu site, no entanto, alcança um público maior, com análises políticas publicadas em turco, armênio e também em inglês. “Em termos de liberdade de imprensa, a Turquia está em um nível muito baixo”, disse Estukyan. “O governo diz que não há jornalistas na prisão. Nega que haja prisioneiros políticos, mas eles existem. A verdade é que não sabemos até quando teremos liberdade.”
Durante a conversa, cujo resumo pode ser lido aqui, Estukyan lamentou o fato de as autoridades turcas não admitirem a existência do genocídio armênio.
As últimas mesas do festival lançaram um olhar sobre a história e a política dos Estados Unidos, mas com perspectivas e abordagens diferentes. Os repórteres da piauí Angélica Santa Cruz e Gilberto Porcidonio conversaram com o professor e ativista Chenjerai Kumanyika sobre seus dois podcasts – Empire City e Uncivil –, ambos criados para narrar violências contra a população negra norte-americana.
Empire City mostra como a criação da polícia de Nova York estava diretamente relacionada à captura de negros alforriados, que depois eram levados ao Sul dos Estados Unidos para voltarem à escravidão. Sua pesquisa ajuda a desmistificar ações racistas como desvios pontuais. “O movimento Black Lives Matter foi muito visual, a gente tinha todas as imagens na câmera. E eu percebi que a realidade do colonialismo não estava na câmera.”
Já Uncivil destrincha a história não contada da Guerra Civil dos Estados Unidos (1861-1865) e a luta pela libertação dos negros escravizados no país. Para isso, se baseia em narrativas pessoais, histórias de descendentes e memórias da comunidade – com uma trilha sonora que permite aos espectadores imaginarem as histórias narradas.
A escolha do áudio como forma para conceber seus projetos, assim como o estilo narrativo, fazem parte da sua estratégia para impactar o público. “Contação de história é a forma mais antiga de comunicação”, ressaltou Kumanyika. “Eu tenho muito respeito pelos jornalistas que dão notícias todos os dias, mas o problema é que estamos exaustos, somos bombardeados o tempo todo e acabamos perdendo a continuidade histórica das coisas.”
Na última mesa do festival, o tema foi novamente a política e a história dos Estados Unidos, mas a partir dos bastidores do jornalismo e suas relações com o poder. A conexão entre uma coisa e outra foi o mote da conversa com a jornalista Ruth Marcus, que após quarenta anos como funcionária do Washington Post, viu uma coluna de sua autoria ser barrada por fazer críticas a mudanças nas regras editoriais do veículo pertencente a Jeff Bezos, fundador e dono da Amazon, que na prática preservariam Donald Trump.
Marcus, que hoje é colaboradora da revista The New Yorker, foi entrevistada no palco pelo editor executivo digital da piauí, Daniel Bergamasco, e pelo colunista do jornal O Globo Bernardo Mello Franco. “Eu não queria pedir demissão”, ela disse. “Mais do que em qualquer momento da minha vida profissional, eu tinha vontade de escrever e explicar para as pessoas o que estava acontecendo [na política americana] e que aquilo não era normal e lícito. Não queria que a minha voz fosse silenciada e nem sair da linha de frente”. Ela deixou o jornal em março deste ano.
No texto completo sobre a mesa, que pode ser lido aqui, Marcus afirma que ainda confia na seção de notícias do Washington Post, mas que se sente “decepcionada” ao ler as páginas de opinião. Hoje, na New Yorker, ela escreve principalmente sobre a relação entre Donald Trump e o Judiciário americano. Mais especificamente, sobre a inação da Suprema Corte em meio ao desmantelamento da democracia no país.
O 9º Festival piauí de Jornalismo teve curadoria de Bergamasco, editor executivo digital da revista, e produção executiva de Raquel Freire Zangrandi.