Iracema – Uma Transa Amazônica

Foi admirável rever Iracema – Uma Transa Amazônica pela primeira vez desde a exibição, em 1980, no 13º Festival de Brasília, onde recebeu os prêmios de Melhor Filme, Melhor Atriz, Melhor Atriz Coadjuvante e Melhor Edição. Depois de ter estreado em 1974, na ZDF, emissora pública de televisão alemã, tendo sido proibido pela censura brasileira, o documentário de Jorge Bodanzky e Orlando Senna só veio a ser lançado no Brasil em 1981. A interdição não impediu, porém, que o filme tivesse uma carreira em cineclubes, nem que participasse da Semana da Crítica do Festival de Cannes, em 1976, além de outros festivais no exterior em que recebeu vários prêmios.

Visto hoje, além de preservar sua notória qualidade original, Iracema adquiriu um novo predicado. O documentário explicita, de modo incisivo, o paradoxo lancinante de que, embora mudanças tenham ocorrido na aparência visual da Amazônia filmada há cinco décadas, os impasses estruturais da região permanecem inalterados.

Para Bodansky, conforme afirmou à plataforma Amazônia Latitude, em entrevista de 2022, Iracema mostra tudo:

a ocupação [da terra], os trabalhadores escravos, a prostituição, a violência. Todas as questões que Iracema expôs são piores hoje. O que está acontecendo na Amazônia é realmente um projeto que começou na ditadura militar e continua mesmo sob um governo mais democrático. O governo não mudou sua maneira de enxergar a Amazônia. A ocupação continua sob a mesma filosofia da ditadura militar dos anos 1960.

Por ironia, a excelência da restauração, feita a partir do negativo original 16mm da matriz de Iracema, contribui, de certo modo, para acentuar o paradoxo mencionado, uma vez que as imagens filmadas há mais de cinquenta anos, agora digitalizadas em 4K, parecem atuais, como se tivesse sido preservado intacto o que elas revelam. 

Em uma época na qual o olhar do documentarista brasileiro ainda estava mais voltado para o Nordeste, Bodansky e Senna tiveram o mérito de se concentrar na região que passara a ter importância estratégica para a ditadura militar, a partir de 1972, com o início a construção da Rodovia Transamazônica. Além disso, a dupla de diretores – Bodansky, responsável também pela fotografia, e Senna pelo roteiro – demonstrou estar à frente do seu tempo, pelo menos entre nós, ao aproveitar a lição dos filmes de caráter etnográfico de Jean Rouch desde Eu, Um Negro (1958), feitos com atores não profissionais e harmonizando o viés ficcional com o de um documentário. Bodansky reconhece, na mesma entrevista citada, que sua maior influência é Jean Rouch. “Sou um grande admirador do trabalho dele. Identifico-me imensamente com a forma como ele filma, ainda hoje.”

No caso de Iracema, homens e mulheres comuns participam sem representar personagens. Mas alguns deles também atuam, como é o caso de Edna de Cássia (Iracema), que contracena com atores e atrizes, entre eles Paulo César Pereio (Tião Brasil Grande) e Conceição Senna (Teresa).

Contando com um orçamento que Bodansky qualifica na entrevista à Amazônia Latitude como muito, muito baixo, o documentário teve que ser filmado em quinze dias.

Vinda da floresta por afluentes, no barco a motor Graças a Deus, a cabocla Iracema, ainda adolescente, segue para Belém pelo Rio Amazonas. O início da sua árdua jornada é acompanhado por mensagens para a população transmitidas pelo rádio. Já na cidade, ela passa pelo mercado Ver-o-Peso, participa da procissão do Círio de Nossa Senhora de Nazaré que é policiada com violência, assiste na feira ao “grandioso espetáculo da jovem que não tem corpo, só tem a cabeça” e vem a morar em uma palafita. Afinal, transcorrido um terço do filme, Iracema vai se prostituir na boate onde o caminhoneiro gaúcho Tião Brasil Grande a tira para dançar ao som de Você É Doida Demais: “Eu pensei em me entregar/ Meu amor meu coração/ Meu carinho e muito mais/ Mas parei por um instante/ Pensei mais dois minutinhos/ E voltei um pouco atrás/… Você é doida demais/ Você é doida demais/ Você é doida demais/ E você é doida demais…”

A dolorosa viagem da protagonista vai se tornando, cada vez mais, uma via-crúcis, e prossegue no caminhão de Tião Brasil Grande que traz pintado no para-choque dianteiro a frase “Do destino ninguém foge”. Transmitido pelo rádio, ouve-se trecho da canção Máquinas Humanas: “Chega um dia em que a gente/ Vai aos poucos percebendo/ Somos máquinas humanas/ Estamos sempre correndo/ O motor logicamente/ É o nosso coração/ A estrada é o tempo/ O passado é contramão/ Vivo estacionado/ Na garagem solidão…” Com Iracema em primeiro plano, de perfil, o caminhão passa pela floresta devastada. Adiante, surge, primeiro, uma nuvem de fumaça e, em seguida, na lateral da estrada, extensa queimada, uma entre tantas ocorridas na década de 1970 que vieram a marcar época, conforme Bodansky relatou na mesma entrevista:

Durante a produção, a região estava sempre em chamas e o fogo nos rodeava constantemente. Estávamos tão acostumados com o fogo que quase esquecemos de tirar uma foto antes de terminar! Quando as pessoas na Europa viram a cena, ficaram surpresas com a imagem. Foi a primeira visão real da Amazônia em chamas que elas viram. Naquela época, a queima da Amazônia não era muito discutida. E estávamos lá, no início dessa conversa.

A certa altura, Tião larga Iracema na beira da estrada e sai de cena por cerca de 23 minutos do filme. Quando ele reaparece, “anos haviam se passado”, segundo Bodansky. Na mesma entrevista, ele explica que queriam 

…mostrar o que acontece normalmente quando as meninas entram na prostituição. É uma situação horrível, elas ficam presas. À medida que envelhecem, vão ficando fisicamente destruídas. É trágico e acontece com todas essas meninas. É uma história triste frequente nessa área.  Elas nunca têm a chance de ter uma vida normal.

Tião volta a encontrar Iracema em outra beira de estrada, mas de início não demonstra conhecê-la. Ela o chama, pergunta se ele não é o Tião Brasil Grande e se não a reconhece. “Mas é claro que te conheço. Te conheço, sim…”, Tião responde: “Tu não é a… Jurema?” “Jurema, não. Iracema”, ela corrige. “Iracema! Iracema! Isso mesmo… Já sei. Da festa do Círio, não foi, não? Ih, meu Deus, cê está diferente, hein? Olhando assim, a primeira vez, nem te reconheço.”

Embora possa parecer inverossímil que Tião não reconheça Iracema, a ambiguidade que paira no encontro serve com eficácia ao propósito dramático de indicar uma realidade trágica – ela é e não é mais a mesma pessoa. A Iracema atual é uma versão degradada da que chegou a Belém a bordo do Graças a Deus.

No fim, após Iracema e Tião trocarem impropérios, ele parte para o Acre no caminhão boiadeiro em que chegou e ela é deixada para trás.

O relançamento de Iracema – Uma Transa Amazônica em cinemas está marcado para 24 de julho em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília e outras cidades, algumas ainda por confirmar. É um evento raro a ser saudado com fanfarras – trata-se de um filme excepcional, verdadeiro clássico do cinema brasileiro.



Piauí Folha

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