Nos dias 5 de maio e 17 de novembro de 2022, pingaram dois Pix na conta do Centro Médico Vita Care registrada em nome de Thaisa Hoffmann Jonasson, esposa do procurador federal Virgílio de Oliveira Filho, então Procurador-Geral do Instituto Nacional de Seguridade Social. Os valores somavam 140 mil reais. A pagadora era a ACCA Consultoria Empresarial, uma das empresas de Antonio Carlos Camilo Antunes, o “Careca do INSS”, como ficou conhecido o lobista e empresário apontado pela Polícia Federal como o principal operador financeiro dos esquemas criminosos que desviaram bilhões de reais de milhões de aposentados e pensionistas.
Àquela altura, Oliveira Filho ocupava um cargo-chave no coração jurídico do sistema: chefiava a Procuradoria-Geral do INSS. Era o homem dos pareceres e tinha nas mãos a caneta que chancelava a legalidade dos atos administrativos, inclusive dos Acordos de Cooperação Técnica (ACTs) que permitiram, nos bastidores, que associações de fachada passassem a descontar mensalidades diretamente da aposentadoria de milhões de beneficiários — sem autorização formal da maioria deles, sem prestação de qualquer serviço e sem controle.
Em junho daquele mesmo 2022, o procurador ascendeu. Deixou o INSS para virar consultor jurídico do Ministério do Trabalho e Previdência, então entregue a José Carlos Oliveira — que foi presidente do INSS de novembro de 2011 até março de 2022, quando virou o chefe do então Ministério do Trabalho e Previdência do governo Bolsonaro. A nomeação de Oliveira Filho foi assinada por Ciro Nogueira, então ministro da Casa Civil.
Segundo os autos do inquérito da Operação Sem Desconto, a partir dali os pagamentos ao entorno de Oliveira Filho se tornaram frequentes. De empresas ligadas a entidades associativas, ou à rede de consultorias do Careca do INSS, foram enviados ao todo 11.997.602,70 reais a pessoas físicas e jurídicas próximas ao procurador. A THJ Consultoria, de sua esposa, recebeu a maior parte do dinheiro. A Xavier Fonseca Consultoria, da irmã, também. A advogada Cecilia Rodrigues Mota, operadora financeira do esquema, repassou à outra parte. A movimentação imobiliária da família explodiu: mais de 6,3 milhões de reais em novos imóveis, 18 milhões de reais em patrimônio acumulado desde 2020.
Quando Lula chegou ao poder, Oliveira Filho perdeu a condição de chefe, mas não por muito tempo. De início, ficou subordinado ao novo procurador-geral do INSS, Bruno Bisinoto. Em março de 2023, houve um pedido da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) — uma das entidades sob investigação da PF — para desbloqueio em lote de mais de 30 mil descontos associativos, sem que essa solicitação houvesse sido feita pelos aposentados e pensionistas. A Procuradoria Federal Especializada do INSS foi contra, apontando que a operação desrespeitava o decreto presidencial que instituíra a necessidade de desbloqueio por parte do beneficiário, e não da associação.
Em seguida, quando o advogado Alessandro Stefanutto assumiu a presidência da autarquia, em julho de 2023, uma articulação silenciosa começou a ser montada para Oliveira Filho ser reconduzido ao cargo de procurador-geral. Na AGU, a procuradora-geral federal Adriana Venturini refutou a decisão: “Não se identifica motivo para a mudança de titularidade da Procuradoria Federal Especializada junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (PFE/INSS – Sede), sob o eventual risco de descontinuidade dos projetos e ações conjuntas em andamento, razão pela qual restituo o feito ao Senhor Advogado-Geral da União, sugerindo que a nova indicação não tenha prosseguimento, nesta oportunidade”, despachou Venturini, em 20 de setembro de 2023. No dia seguinte, porém, o ministro Jorge Messias ignorou a recomendação. Oliveira Filho retomou o posto de procurador-geral do INSS em setembro, nomeado pela Casa Civil.
No mês seguinte, Oliveira Filho avocou o processo da Contag para si, alegando tratar-se de “consulta pontual de baixa complexidade jurídica e com pedido de urgência”. Logo, a assinatura dele carimbou o desbloqueio de mais de 30 mil benefícios para a Contag. Aprovado pelo presidente Stefanutto, o desbloqueio contrariou pareceres anteriores e um decreto presidencial que exige consentimento expresso dos aposentados e pensionistas — a PF aponta no inquérito a “ilicitude da conduta dos envolvidos no desbloqueio em lote narrado”. Esse é um dos principais indícios de atuação criminosa da cúpula do INSS.
A transversalidade da atuação de Oliveira Filho — um técnico de carreira, legitimado por dois governos de espectros ideológicos distintos — simboliza a mecânica de captura institucional que permitiu que o esquema crescesse exponencialmente. Pelos dados da CGU, a escalada começou de 536,3 milhões em 2021 para 706,2 em 2022, passou para 1,3 bilhão em 2023 e explodiu para 2,8 bilhões em 2024.
A maior parte dos valores pagos ao entorno de Oliveira Filho veio de empresas ligadas ao “Careca do INSS”. Os valores eram pagos, por exemplo, à THJ Consultoria Limitada, pertencente a Thaisa desde 30 de maio de 2022, e também à Curitiba Consultoria em Serviços Médicos SA, da qual Thaisa era sócia desde novembro de 2022 junto com Rubens Oliveira Costa, também investigado.
A lista de pagamentos segundo a PF:
- A Xavier Fonseca Consultoria, de uma irmã de Oliveira Filho, recebeu R$ 630.695,28 de um escritório da advogada Cecilia Rodrigues Mota, também investigada no caso.
- Thaisa Hoffmann Jonasson recebeu, em sua conta pessoal, R$ 59.000,00 de Adelino Rodrigues Junior.
- A THJ Consultoria recebeu ao todo R$ 3.760.907,38 de empresas intermediárias relacionadas às entidades associativas.
- A Curitiba Consultoria recebeu ao todo R$ 7.407.000,00 de empresas intermediárias relacionadas às entidades associativas.
- O Centro Médico Vita Care recebeu R$ 140.000,00 de empresa intermediária relacionada às entidades associativas.
A piauí enviou questionamentos à defesa do procurador federal Virgílio de Oliveira Filho sobre sua atuação no INSS e sobre os indícios que a PF citou contra ele, como o pagamento de cerca de 12 milhões à esposa a partir de 2022. O advogado Mauricio Moscardi, ex-delegado da PF, disse que não serão prestados esclarecimentos à imprensa, neste momento, “em respeito ao direito ao silêncio, que é uma prerrogativa constitucional da defesa, especialmente diante da ausência de acesso integral aos autos e da necessidade de uma análise mais aprofundada dos elementos que os compõem”.
“Tão logo a defesa tenha pleno acesso aos documentos e provas constantes do processo, nosso cliente se manifestará oportunamente e com total transparência, dentro dos limites legais e no momento apropriado”, complementou o advogado.
Após a primeira fase da Operação Sem Desconto, a Polícia Federal ampliou o escopo da investigação a partir do material apreendido em mandados de busca. Entre os documentos está um caderno de anotações de uma secretária de Antonio Carlos Camilo Antunes — o “Careca do INSS” — no qual aparecem, manuscritas, as expressões “5% Stefa” e “5% Virgílio”. A menção a percentuais que podem estar vinculados aos nomes do então presidente do INSS, Alessandro Stefanutto, e do procurador-geral, Oliveira Filho, está sob apuração.
O total de descontos associativos aplicados nos contracheques de aposentados e pensionistas, com ou sem consentimento, já ultrapassa 10 bilhões de reais — boa parte destinada a entidades de fachada. O escândalo evidencia não apenas a sofisticação do esquema, mas a profundidade da captura institucional em uma engrenagem que, operando nos bastidores, corroeu silenciosamente os fundamentos de proteção social do Estado.