Curtindo a vida adoidado – revista piauí

Alexandre Teodoro dos Santos, o China, vivia dias difíceis nos primeiros meses de 2019. Membro da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), o homem corpulento e de baixa estatura, com 44 anos à época, estava atrás das grades desde junho de 2015, acusado de chefiar uma quadrilha de traficantes de cocaína baseada no Norte do Paraná. Pelo crime, acabou condenado a 23 anos de prisão por tráfico de drogas, associação para o tráfico e lavagem de dinheiro. Na melhor das hipóteses, só deixaria a cadeia dali a mais de dois anos, e, ainda assim, somente durante o dia.

China sofria de hepatite C, uma doença viral que ataca o fígado e pode evoluir para cirrose ou até câncer. A carência de médicos hepatologistas na região de Mossoró (RN), onde ele estava detido, motivou sua transferência para a penitenciária estadual de Piraquara, na região metropolitana de Curitiba, em março daquele ano de 2019. 

Três meses depois da chegada ao Paraná, a defesa de China solicitou à 1ª Vara de Execuções Penais da capital do estado que ele passasse a cumprir o restante da sua pena em prisão domiciliar, sob o argumento de que ele perdera peso e o seu quadro de saúde se agravara, com risco real de morte. A pedido da Justiça, Francisco Santos, diretor clínico do Complexo Médico Penal (CMP) em Curitiba, responsável pelo tratamento médico dos detentos do estado, avaliou China e concluiu que ele poderia ser mantido no sistema penitenciário paranaense, sem prejuízo ao seu tratamento. Com base no laudo, o Ministério Público se opôs à prisão domiciliar para o traficante. 

Esse parecer, contudo, de nada adiantou. Em 2020, a juíza Ana Carolina Bartolamei Ramos permitiu que China cumprisse sua pena em casa, com tornozeleira eletrônica. “É evidente que este juízo não pode simplesmente indeferir o pedido do reeducando com base na declaração juntada pelo Complexo Médico Penal, até mesmo porque o próprio reeducando, por sua defesa, relata os sintomas que se desenvolveram após o diagnóstico da enfermidade que o acomete, bem como o descaso que vem sofrendo dentro do sistema em relação ao tratamento inadequado”, escreveu a magistrada. A decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Paraná (procurada, a assessoria do TJ não quis se manifestar).

No ano seguinte, em abril de 2021, o traficante mudou-se de Pinhais, vizinha a Curitiba, para Sorocaba, no interior paulista. Uma vez no novo endereço, ele deixou de utilizar tornozeleira eletrônica, segundo informou a assessoria da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), embora não conste no processo judicial de execução penal nenhuma decisão dispensando o uso do equipamento. Era tudo o que China queria. Por pelo menos dois anos, enquanto oficialmente, para a Justiça e o Ministério Público, ele cumpria a pena em casa, China retomou com força suas atividades no narcotráfico internacional e na lavagem do dinheiro das drogas, com direito a festas e passeios pelo país com a família e os amigos.

A fim de conseguir a autorização de transferir a pena domiciliar para Sorocaba, China informou à Vara de Execução Penal da cidade o endereço de uma das filhas, um apartamento pequeno, de dois quartos, na Rua Augusto Lippel, no bairro Parque Campolim. De tempos em tempos, seu advogado, Anderson Alexandrino Campos, solicitava autorização à Justiça para que ele viajasse a São Paulo com o propósito de se consultar com um médico hepatologista. Em uma das manifestações à Justiça, o advogado reforçou o “senso de responsabilidade” do cliente, “que permanece recolhido em prisão domiciliar sempre que não vai ao médico”. Segundo Campos, China possuía obesidade e hipertensão arterial, mas era zeloso. “Para se ter uma ideia, Alexandre [Teodoro dos Santos] só usa utensílios domésticos exclusivos seus, pois secreções ou fluidos corporais são formas de transmissão da hepatite”, afirmou.

Em outubro de 2022, no entanto, surgiu o primeiro indício de que China mentia. No dia 26 daquele mês, o oficial de Justiça não o encontrou no endereço da Rua Augusto Lippel para intimá-lo à renovação da sua prisão domiciliar. Segundo o oficial, o zelador do condomínio informou a ele que China se mudara havia seis meses. Disse mais: “Seu atual paradeiro é desconhecido.” 

O sumiço do traficante ameaçava a continuidade da prisão domiciliar. Então, um mês depois, o advogado Campos informou ao juiz Emerson Tadeu Pires de Camargo que houvera um equívoco do zelador, pois China estava, sim, morando no prédio, mas no apartamento 52, e não no 64, como informado à Justiça quando se mudou para Sorocaba. O promotor Sidney Cesar Ribeiro Sydow e o juiz Camargo acolheram a justificativa, e China continuou liberado para seguir longe das grades, em prisão domiciliar. Em maio de 2024, o oficial de Justiça retornou ao condomínio para entregar uma nova intimação a China, agora no apartamento 52. Mas o zelador informou que naquele imóvel morava um casal já havia dois anos. Mais uma vez entrou em cena o advogado Campos, dizendo que, na verdade, seu cliente residia no apartamento 52-H, e não no 52-J, mas que se mudara recentemente para a casa da outra filha, em Araçoiaba da Serra, município vizinho. O argumento soava suspeito novamente, mas, pela segunda vez, o promotor e o juiz nada fizeram. 

Era pura lorota de China. Ele alugara, em nome de uma empresa fantasma, um apartamento bem maior, com três dormitórios, no mesmo bairro de Sorocaba, de onde poderia entrar e sair quando bem entendesse.

“Para alguns criminosos condenados por crimes graves, deveria haver um maior rigor na fiscalização do cumprimento das condições da prisão domiciliar”, afirma à piauí Taiguara Libano Soares, professor de direito penal da Universidade Federal Fluminense (UFF). Há cerca de 122 mil detentos cumprindo pena em prisão domiciliar no país, de acordo com os dados mais recentes (de dezembro de 2024) da Secretaria Nacional de Políticas Penais, do Ministério da Justiça.

China aproveitou a liberdade para retornar ao seu velho métier, o tráfico internacional de drogas, remetendo grandes cargas de cocaína a partir do porto de Santos para a Europa, Austrália, África, Oriente Médio e Japão. Em abril de 2023, o setor de inteligência da Polícia Militar enviou ao Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado (Gaeco) em Sorocaba um relatório sobre a volta de China ao tráfico de drogas, em nome do PCC. O dinheiro do crime era lavado por meio de sucessivas transações financeiras em contas bancárias abertas em nome de empresas de fachada e de testas de ferro. Um desses laranjas já estava morto quando o grupo criou uma conta bancária em seu nome. Apenas nessa conta foram depositados 32,5 milhões de reais. China, que foi contemplado com o auxílio emergencial do governo Bolsonaro durante a pandemia, possuía imóveis, um avião de pequeno porte, uma lancha e veículos avaliados em 1,4 milhão de reais. Tudo em nome de terceiros.

A partir do documento da PF, a corporação e o Gaeco passaram a seguir os passos de China, tanto nas ruas quanto nas redes sociais da família. A rotina do paciente hepático incluía passeios em shoppings centers com a família, viagens frequentes a São Paulo, passeios de lancha pelo litoral paulista e visitas à praia com direito a caipirinhas pouco recomendáveis (o consumo de álcool por pessoas com hepatite C pode acelerar a cirrose). Em outubro passado, o traficante do PCC passou uma semana na praia de Jericoacoara, no litoral cearense. Mais recentemente, em abril deste ano, China deu uma festa para pelo menos cinquenta convidados em uma chácara de Araçoiaba da Serra para comemorar o seu 50º aniversário.

O traficante foi preso preventivamente por policiais militares na manhã de 23 de abril no restaurante de uma das filhas, também em Araçoiaba da Serra. No celular dele, os promotores do Gaeco encontraram diálogos de China tratando da compra de cocaína na Colômbia e da exportação da droga via portos brasileiros. Dias depois, ele e outras doze pessoas foram denunciadas pelo Gaeco à 2ª Vara Criminal de Sorocaba por organização criminosa e lavagem de dinheiro. Desde então, ele está em uma cela da penitenciária de Presidente Venceslau, no Oeste paulista, em tese longe dos perigos da caipirinha.

Campos, seu advogado, disse ter havido “zero irregularidade” na execução da pena de China. “O Juízo de Sorocaba é muito atento e, periodicamente, a defesa técnica informava todas as idas a médicos, exames, resultados dos exames, endereços. Essa prisão [de abril] vai fazer retroagir totalmente o tratamento, correndo o sério risco de Alexandre ir a óbito.” Sobre a denúncia feita pelo Gaeco, o advogado não se pronunciou. Em nota, a assessoria do TJ de São Paulo informou apenas que a prorrogação da prisão domiciliar foi “embasada na prova documental juntada aos autos” e em parecer do Ministério Público. Já a assessoria do MP não se manifestou.



Piauí Folha

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