Em 18 de julho de 2024, muito antes da deflagração da Operação Sem Desconto, representantes da Polícia Federal apresentaram ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva uma proposta para reduzir as fraudes em benefícios pagos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Em uma reunião no Planalto, o diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, entregou a nota técnica da Divisão de Repressão de Crimes Previdenciários (DPREV) que mostrava a necessidade de identificação biométrica. Além do presidente Lula, participaram do encontro cinco ministros (Rui Costa, da Casa Civil; Ricardo Lewandowski, da Justiça e Segurança Pública; Fernando Haddad, da Fazenda; Esther Dweck, da Gestão e da Inovação; e Carlos Lupi, da Previdência Social), além dos presidentes do INSS, Alessandro Stefanutto, e da Dataprev, Rodrigo Assumpção.
Não era a primeira vez que a PF propunha esse tipo de verificação da identidade dos beneficiários. Durante quase duas décadas, a Polícia Federal alertou sucessivos governos sobre as brechas que transformaram o INSS numa fábrica de fraudes previdenciárias. Os avisos eram claros, as recomendações precisas: sem verificação por biometria, o sistema é vulnerável. As reações, no entanto, nunca foram suficientes.
O diagnóstico apresentado pela PF ao governo Lula se baseava em operações realizadas entre 2015 e 2023 e em anos de estudos acumulados. O documento, ao qual a piauí teve acesso, apontava que, no período, o prejuízo total com fraudes previdenciárias chegou a 19,6 bilhões de reais. Desse montante, 11,3 bilhões de reais poderiam ter sido evitados com um controle simples: a verificação biométrica dos beneficiários. Só em 2023, a estimativa é de que 55,7 bilhões de reais tenham sido drenados dos cofres públicos em fraudes que teriam sido barradas com uma checagem básica de identidade. A Polícia Federal sustenta que 58% das fraudes identificadas poderiam ter sido evitadas com uso de biometria obrigatória.
Remonta a 2008 a tentativa da Polícia Federal de fechar as brechas para fraudes no sistema previdenciário. Quatro anos depois, um grupo de trabalho de delegados produziu o “Relatório de Vulnerabilidades Previdenciárias”, apontando como principal falha a obtenção indevida de múltiplos benefícios por uma mesma pessoa, com base em documentos falsos. A solução proposta já naquela época era a criação de um sistema biométrico de identificação – mas o INSS não levou adiante.
A cronologia resgatada pela Polícia Federal é eloquente. Em 2013, a Justiça Federal em Uberlândia determinou que o INSS implementasse a biometria. A sentença classificava como “incalculável” o custo da ausência de um sistema confiável de verificação de identidade. O INSS recorreu e, em 2017, o TRF reverteu a decisão, alegando que obrigar o Executivo a adotar a biometria violaria a separação de poderes.
A omissão persistiu, apesar de insistentes alertas. Entre 2013 e 2017 (durante os governos Dilma Rousseff e Michel Temer), a PF enviou ao menos cinco ofícios ao INSS reiterando os riscos de fraude e a necessidade de controles biométricos. Em 2016, o então diretor-geral da corporação chegou a assinar um ofício exigindo providências. A resposta oficial do INSS veio em 2017: o órgão alegava que a digitalização dos serviços dificultava a coleta biométrica presencial e atribuía aos bancos a responsabilidade pela verificação em casos de pagamento.
A nota técnica da PF apresentada ao Planalto em julho de 2024 recomendava sete medidas para estancar a sangria. A principal e mais urgente era a implementação da biometria obrigatória em todos os momentos críticos da jornada do beneficiário: cadastro, requerimento, concessão, pagamento e prova de vida. O delegado Luís Eduardo Melo de Castro, chefe da DPREV, defende que a biometria é “a medida que traria o maior impacto na diminuição de fraudes, especialmente daquelas praticadas em série e com grande velocidade, num ambiente de serviços públicos cada vez mais digitalizado”.
A PF sugere inclusive o aproveitamento da base da Justiça Eleitoral — que já possui a biometria de 62% da população — como forma de acelerar a implementação e baratear os custos. A corporação estimou que um investimento de R$ 160 milhões seria suficiente para coletar a biometria dos cerca de 16 milhões de beneficiários ainda não registrados — uma fração do que se perde anualmente com fraudes.
Além da biometria, o relatório sugeriu:
- o aprimoramento da segurança do aplicativo Meu INSS, alvo frequente de invasões por fraudadores;
- o reforço da segurança física e digital das agências (com CFTV – câmeras de monitoramento interno – e controle de acessos);
- a reavaliação das regras de concessão automática de benefícios, que vêm sendo manipuladas em fraudes em série;
- e a qualificação dos dados do CNIS, o Cadastro Nacional de Informações Sociais, que contém milhões de registros inconsistentes, segundo auditorias da CGU e do TCU.
A nota também destaca que a digitalização do INSS, embora desejável, tem facilitado fraudes em larga escala. Hackers instalaram dispositivos clandestinos em redes internas, capturaram credenciais de servidores e manipularam sistemas para liberar benefícios fraudulentos. Só com reativações indevidas de benefícios cessados, identificadas entre abril e setembro de 2022, os prejuízos chegaram a R$ 1 bilhão.
Sem obrigatoriedade legal, o INSS postergou qualquer iniciativa mais robusta. Alegou restrições orçamentárias, dificuldades técnicas e, mais recentemente, a transição para o atendimento remoto/eletrônico. Enquanto isso, criminosos encontraram terreno fértil para atuar. Segundo a PF, há indícios de concessões irregulares em série: pensões por morte pagas a supostos dependentes que nunca foram verificados, reativações suspeitas de benefícios suspensos, uso de documentos falsos, adulteração de vínculos empregatícios e, em alguns casos, inserção de dados fraudulentos diretamente na rede interna do INSS, por meio de equipamentos clandestinos conectados às agências.
As falhas estão espalhadas por todas as fases do processo. Os problemas incluem a falta de identificação confiável das pessoas; inserção de vínculos empregatícios falsos ou adulterados, falhas na segurança orgânica das instalações e o uso indevido de credenciais de servidores ou corrupção. Além disso, “concessões automáticas irregulares e recebimento irregular de pagamentos por terceiros têm sido exploradas por criminosos para o cometimento de fraudes em série de grande vulto”.
Um dos principais alvos das quadrilhas é o sistema CNIS, o banco de dados que concentra as informações sobre vínculos e contribuições dos segurados. Auditorias da CGU e do TCU de 2022 mostram que o CNIS abriga mais de 24 milhões de registros de pessoas com dados incompletos, inválidos ou inconsistentes. O cruzamento com outras bases, como CadÚnico, SGP e Cafir, também é precário.
O modo diversificado de burlar os sistemas do INSS chama a atenção da PF. “Burladores seguem agindo não somente na concessão do benefício, mas também na inserção de dados inverídicos em sistemas de benefícios e no CNIS, demonstrando conhecimento não apenas do fluxo de trabalho, mas de mecanismos internos dos sistemas e regras de concessão automática que independem de qualquer análise administrativa.”
A primeira solução do INSS para biometria veio só no fim de 2022, nos casos dos empréstimos consignados, de acordo com uma instrução normativa de novembro daquele ano. A biometria passou a ser exigida, mas a responsabilidade de fazer a verificação ficou com os bancos que concedem o crédito. Porém, no caso dos descontos associativos — centro do escândalo revelado pela Operação Sem Desconto —, a verificação de identidade ficou sob responsabilidade do INSS e da Dataprev. Na prática, não havia controle. Em paralelo, a roubalheira avançou no período e passou da casa de 1 bilhão em 2023.
Só em março de 2024 o INSS solicitou a biometria à Dataprev, que ficou pronta em setembro de 2024. Mas, mesmo depois disso, o sistema ainda permitia o uso de uma “biometria alternativa”: o presidente do INSS, Alessandro Stefanutto, autorizou que as próprias entidades associativas (muitas delas envolvidas em fraudes) fizessem a verificação biométrica contratando empresas privadas. A biometria fake seguiu valendo até 2025, quando finalmente foi extinta.
A proposta da Polícia Federal ficou parada em algumas gavetas da esplanada.
Enquanto isso, a escalada das fraudes em 2024 chegou ao ápice: 2,8 bilhões de reais. Reportagem da piauí publicada na edição de junho reconstitui passo a passo os atos e omissões dos governos Temer, Bolsonaro e Lula que permitiram a explosão do escândalo que vitimou milhões de idosos brasileiros.