Como avança a tarifa zero

O Brasil vive um surto de tarifa zero. No momento em que este artigo é escrito, são 136 cidades no país com transporte público gratuito todos os dias do ano para a população. Nelas, vivem cerca de 8 milhões de pessoas. Além disso, seis capitais, como São Paulo e Brasília, adotam a medida em finais de semana ou feriados. Tudo isso era inimaginável há cinco anos, quando havia no país menos de quarenta cidades com a política, a maior parte de pequeno porte.

O crescimento da tarifa zero se dá por dois fatores: contágio e cálculo. O contágio ocorre quando um político ou gestor público conhece a experiência de outra cidade e avalia os resultados, que têm sido bastante positivos. Em geral, o número de passageiros nos ônibus cresce de três a quatro vezes. Com mais gente circulando, a economia se movimenta, e o dinheiro que ia para a passagem vai para comércio e serviços, gerando aumento de vendas e arrecadação dos municípios. Ocorre também a redução de trânsito e congestionamentos, menos gente faltando a consultas do SUS, maior frequência a cursos noturnos etc.

O cálculo ocorre quando um político ou gestor público se depara com a demanda de subsídio ao transporte. Desde a pandemia, o número de passageiros caiu muito – e nunca se recuperou. A conta dos sistemas de transporte no Brasil, que fechava a duras penas (com tarifas altas e ofertas precárias), passou a não fechar. Com a queda de receita da tarifa, as concessionárias de ônibus passaram a demandar expressivos subsídios das prefeituras. Nessa hora vem o cálculo: ao invés de financiar grande parte da operação para mantê-la no estado atual, muitos prefeitos perceberam que seria melhor financiar a operação inteira e extinguir a tarifa.

Há, ainda, um segundo cálculo nessa operação – o cálculo político. A medida é popular e costuma ser bem avaliada nas cidades em que é implantada. Um estudo do impacto eleitoral da tarifa zero foi apresentado em artigo que assinei com os pesquisadores Daniel Santini e Letícia Birchal Domingues. Em resumo, a boa avaliação da política parece ter tido efeito no último pleito. Os gestores municipais que implementaram tarifa zero e tentaram reeleição em 2024 tiveram 89,1% de taxa de vitória, contra 81,25% da média nacional.

Alguns casos são emblemáticos. Em Luziania, cidade de cerca de 200 mil habitantes em Goiás, o prefeito Diego Sorgatto (União) implementou tarifa zero em 2023. No ano seguinte, foi reeleito com mais de 75% dos votos, a maior votação da história da cidade. Perguntado sobre a razão do recorde eleitoral, o mandatário disse ser devido às políticas que implementou, “em especial a gratuidade dos ônibus”. 

O crescimento da tarifa zero, no entanto, se dá à despeito do quadro institucional, que é desfavorável à medida e desincentiva a redução da tarifa. Um dos principais pilares de financiamento do transporte público no país é a contribuição dos empregados e empregadores, com o Vale Transporte. Mas a Lei do Vale Transporte vincula a contribuição ao valor da tarifa, o que gera um contrassenso – quanto mais as prefeituras cumprirem a Lei Nacional de Mobilidade Urbana (e praticarem uma tarifa módica) menos seus sistemas de transporte arrecadam.

Quando a tarifa é zerada, a lei brasileira faz com que o valor do Vale Transporte seja também zerado. Ou seja, as empresas deixam de contribuir, embora se beneficiem dos impactos positivos da política. É evidente que o desenho de financiamento atual representa um obstáculo para a implementação da tarifa zero, já que retira a contribuição empresarial e faz com que as prefeituras tenham que arcar com todo o custo. Ainda assim, a cada uma ou duas semanas desponta uma nova cidade com tarifa zero no país.

O Brasil está hoje na vanguarda de uma tendência global. Temos o maior número de cidades com gratuidade do transporte no mundo, seguido de Estados Unidos, Polônia e França, segundo levantamento do professor Wojciech Kębłowski, da Universidade Livre de Bruxelas. A maior cidade no mundo com a política é Belgrado, capital da Sérvia, com 1,2 milhão de habitantes. Nas prévias do Partido Democrata para a prefeitura de Nova York, o candidato vencedor, Zohran Mamdani, apresentou como uma de suas principais propostas a tarifa zero no transporte. Se a medida for implementada, será a primeira vez que chegará a uma megalópole.

Em um artigo publicado na piauí em setembro do ano passado, avaliei os impactos da tarifa zero na atividade comercial em Caucaia, no Ceará. A Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) relatou um aumento de 30% nas vendas do comércio. Conversei com comerciantes locais que atestaram a melhora (um deles disse ter tido um incremento de mais de 100% nas vendas). Analisando a arrecadação de ICMS do município, constatei um crescimento de 8% no ano após a implementação da medida, enquanto outras cidades médias e grandes do Ceará tiveram perda de arrecadação do tributo. Mas, para confirmar a relação de causa e efeito, seria necessária uma avaliação mais robusta. Por isso fiz a ressalva de que “ainda são poucos os estudos aprofundados dos desdobramentos, nas diversas áreas, das políticas de tarifa zero”.

Esse cenário começou a mudar com um artigo publicado em fevereiro deste ano pelos economistas Mateus Rodrigues, Daniel Da Mata e Vitor Possebom, da Fundação Getulio Vargas. Em um trabalho de fôlego, os pesquisadores analisaram 57 cidades com tarifa zero no Brasil, do período de 1994 a 2022, e utilizaram como grupo de controle outras 2.731 cidades que não adotaram a medida. Grosso modo, o pressuposto desse tipo de trabalho é: se o primeiro grupo obtiver resultados distintos do segundo, isso pode ser atribuído à tarifa zero.

E os resultados foram significativos. As cidades que implementaram transporte gratuito tiveram 3,2% mais empregos do que as demais – e uma tendência de que essa diferença siga aumentando. O número de empresas nas cidades com tarifa zero cresceu 7,5% em relação àquelas em que se paga a passagem dos ônibus. Além disso, a gratuidade do transporte levou à redução de 4,1% na emissão de gases de efeito estufa. Na avaliação dos autores, “esses resultados podem ser considerados grandes quando comparados a outras políticas analisadas na literatura”. 

Não é difícil entender as razões do impacto da tarifa zero na economia. Segundo dados do IBGE, o transporte é o segundo maior gasto dos brasileiros, atrás somente da alimentação. Em abril de 2025, as famílias no país gastaram 20,7% de sua renda com transporte, ao passo que a alimentação consumiu 21,87%. Num país de maioria pobre, “transporte e comida competem no mesmo orçamento”, como resume Monica Guerra Rocha, do Instituto Comida do Amanhã. Quando a tarifa do transporte é zerada, o dinheiro disponibilizado para as famílias vai para o comércio local. E a liberdade para circular aumenta a dinâmica da economia e a possibilidade de busca de empregos.

Os pesquisadores da FGV não encontraram correlação entre a gratuidade do transporte e redução de automóveis nas ruas. Mas esse efeito começa a aparecer em experiências mais recentes, como a de São Caetano do Sul (SP), que implementou tarifa zero em novembro de 2023 e não está analisada no artigo. Por meio de uma tecnologia de monitoramento do trânsito realizada em parceria com o Google e o aplicativo Waze, a prefeitura da cidade identificou redução progressiva do trânsito após a tarifa zero – o cenário anterior era de crescimento constante. Os congestionamentos reduziram significativamente. Segundo cálculos da prefeitura, o transporte gratuito retirou cerca de 1.500 veículos por hora das ruas da cidade.

Um artigo recente que analisa a experiência de São Caetano do Sul aponta como a tarifa zero produz aumento da eficiência do gasto público. Realizado por Daniel Santini, Thiago Von Zeidler, Silvana Zioni, Danielle Andrade e Georgia Briano, o artigo analisa dados obtidos junto ao poder público de circulação nos ônibus. Quando o sistema era pago, cada passageiro custava 5 reais e o total de passageiros era de 460 mil. Após a tarifa zero, a prefeitura paga ao operador em média 2,10 reais por passageiro, e circulam 1,75 milhão de pessoas por mês. Muito mais gente circula na cidade a um custo individual muito menor.

O crescimento em mais de quatro vezes no número de passageiros se deu com um incremento da oferta em cerca de 30%. Como isso é possível? O milagre acontece pela maior adesão ao transporte nos entrepicos. Ou seja, no horário em que os ônibus circulavam vazios, as pessoas passam a utilizá-los mais. O recurso (ônibus, motorista, combustível) que já estava disponibilizado para a sociedade passa a ser melhor utilizado. O custo por passageiro cai e a eficiência aumenta.

O crescimento da Tarifa Zero se dá por contágio e cálculo, mas é hoje limitado pelo quadro normativo e de financiamento. Duas iniciativas legislativas em curso têm a possibilidade de alterar esse quadro – e promover um impulso qualitativo e quantitativo ao transporte no Brasil. Uma delas tramita na Câmara Municipal de Belo Horizonte e outra no Congresso Nacional.

Na capital mineira, avança um projeto de lei já com maioria de assinaturas de vereadores para tornar o transporte gratuito. Apresentado pela vereadora Iza Lourença, do Psol, o projeto apelidado de Busão 0800 ganhou outras 21 assinaturas – formando maioria em uma Câmara com 41 vereadores. Aprovado na Comissão de Legislação e Justiça e na Comissão de Mobilidade Urbana, Indústria e Comércio, o PL apresenta quatro fontes de financiamento do transporte. A maior delas é uma contribuição a ser paga por todas as empresas do município, que substituiria o Vale Transporte. Mesmo isentando as pequenas empresas, o novo desenho é capaz de arrecadar cerca de 2 bilhões de reais por ano, 30% a mais do que o sistema custa hoje.

Embora manuais de Direito Tributário descrevam o transporte urbano como exemplo típico de serviço específico e divisível, houve dúvida se seria constitucional estabelecer uma taxa municipal para seu financiamento. No município de Vargem Grande Paulista, uma proposta similar apresentada em 2019 chegou a ser derrubada em primeira instância. Recentemente, com o julgamento do tema 1282 pelo STF, a dúvida se dissipou, quando se autorizou taxa sobre propriedade de veículos para custeio de ações de salvamento e resgate pelos bombeiros. A situação é similar ao transporte, que pode ser financiado também da mesma forma.

No Congresso, começou a tramitar na CCJ a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 25, que regulamenta a gratuidade do transporte no Brasil por meio do estabelecimento do Sistema Único de Mobilidade, o SUM. De autoria da deputada Luiza Erundina (Psol-SP), a PEC vai além da Tarifa Zero, já que apresenta também mecanismos de regulação, transparência e distribuição de responsabilidades entre os entes federativos. Por prover uma solução estrutural para a área, pode ser chamada de PEC do Transporte Público. 

A PEC conta com mais de 170 assinaturas de parlamentares e prevê duas formas de financiamento do transporte público no país: uma contribuição sobre o uso do sistema viário, para automóveis, e uma contribuição para empregadores, que substituirá o Vale Transporte. Se for implementada, a ideia é que o transporte urbano funcione de forma similar ao SUS – como um serviço público universal, acessível e atendendo a toda a população. Para que avance, é preciso que o presidente da CCJ, Paulo Azi (União-BA), coloque a matéria em pauta. 

O transporte urbano é importante demais para ter sido menosprezado por tanto tempo. Impulsionado pela mobilização social que estourou no Brasil em 2013, e pelas prefeituras que implementaram tarifa zero e colhem bons resultados, hoje se começa a chegar a um debate institucional à altura do problema. O projeto de lei do Busão 0800 de Belo Horizonte e a PEC do Transporte Público representam os maiores avanços políticos que o país já vislumbrou para começarmos a ter um sistema de transporte que atenda a toda a população, promovendo justiça social, melhorias na mobilidade, na economia e no meio ambiente.



Piauí Folha

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