Blefes e perigos reais no Congresso

Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, avisou que toda alegria é efêmera porque o mal está sempre à espreita: “ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de Caim.” O otimismo, mesmo que contido, com a condenação histórica de um ex-presidente e militares por crimes contra a democracia há de ficar suspenso por ora. Desfrutamos dele por seis ou sete dias, um Carnaval e um pouco mais, até que o Congresso passou a derramar, por todos os lados, a baba de Caim. Ao longo desta semana, a Câmara dos Deputados trabalhou em velocidade surpreendente para pôr em marcha processos legislativos que, de diferentes modos, protegem quem comete crimes e limitam as ações da principal instituição que pode responsabilizá-los, o Supremo Tribunal Federal. 

Sob a liderança (formal, ao menos) de Hugo Motta (Republicanos-PB), os deputados aprovaram em dois turnos uma proposta de emenda à Constituição apelidada, corretamente, de PEC da Blindagem. Se confirmada no Senado, seu principal efeito será dificultar como nunca antes a ação da Justiça contra parlamentares e presidentes de partidos. Resta saber se os senadores, muitos dos quais disputarão a reeleição no ano que vem, toparão embarcar nessa proposta impopular. O custo para eles, que dependem do voto majoritário, é mais alto do que para os deputados, escolhidos por voto proporcional e menos suscetíveis à maré da opinião pública.

A bancada bolsonarista, não satisfeita em votar em peso a favor da PEC (83 a favor, 5 abstenções e nenhum contra), conseguiu ainda aprovar a urgência do PL da Anistia. O texto do projeto ainda não está consolidado, porque permanecem dúvidas sobre quem seria beneficiado (Bolsonaro, a Débora do batom?) e qual será o tamanho dessa generosidade. Sua tramitação em urgência, contudo, é sem dúvidas uma má notícia: uma ideia tão temerária quanto perdoar aqueles que tentaram destruir a democracia agora será analisada a toque de caixa, sem que haja tempo para debates e para que a população se inteire do que está acontecendo. 

Dias de glória para os bolsonaristas, mas também para o Centrão: uma mão lavando a outra. É a turma que Celso Rocha de Barros, no Foro de Teresina e na Folha de S.Paulo, costuma chamar de consórcio de ladrões, golpistas e ladrões golpistas.

Propostas de emenda à Constituição não dependem de sanção do presidente da República, então a PEC da Blindagem viverá ou morrerá pelas mãos do Congresso. Sua aprovação, evidentemente, foi um recado dos deputados ao STF: querem mostrar que, se o tribunal não se dobrar à anistia, a coisa pode ficar ainda pior. É cedo para dizer o quão bem-sucedida foi essa cartada. No Senado, a primeira parada da PEC deve ser a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), cujo presidente, Otto Alencar (PSD-BA), já disse que não a aprova “de jeito nenhum”.

O risco, contudo, não deve ser subestimado – e, portanto, vale analisar detidamente o que diz a PEC. Se aprovada como está hoje, ela será o maior obstáculo à responsabilização de parlamentares desde que a Constituição foi promulgada, em 1988. Enfraquecerá dois pilares básicos da vida parlamentar: o regime de responsabilidade jurídica, que faz com que deputados e senadores respondam à Justiça quando violam a lei, e o regime de responsabilidade política, pelo qual eles prestam contas publicamente por seus atos, lidando com as consequências disso.

Na esfera jurídica, a capacidade de persecução penal contra parlamentares será, na prática, muito reduzida. Originalmente, a Constituição dava à Câmara e ao Senado o poder de, por votação secreta, relaxar prisões em flagrante de seus integrantes e impedir o recebimento de ações penais contra eles. O objetivo, vale dizer, era nobre: num país recém-saído da ditadura, o Congresso queria garantir que nenhum parlamentar fosse perseguido na Justiça por suas posições políticas. Com o tempo, no entanto, ficou claro que esse dispositivo havia se desvirtuado: em vez de proteger gente perseguida, estava garantindo a impunidade de parlamentares que se elegeram justamente para não ter de responder à Justiça por crimes comuns, alguns deles chocantes. Foi o caso de Hildebrando Pascoal, ex-policial militar que liderou um grupo de extermínio no Acre e se elegeu deputado federal pelo antigo PFL. Pelo regime original de imunidade previsto na Constituição de 1988, a impunidade era praticamente total. Autorizações para processar parlamentares foram raríssimas.

Por isso, em 2001 o Congresso aprovou uma emenda que mudou essa regra. A votação sobre o relaxamento de prisões em flagrante e autorização para processos criminais passou a ser feita com voto aberto, uma medida salutar para a democracia e a transparência. Dali em diante, os parlamentares que quisessem aliviar a barra dos colegas tinham de fazê-lo em público. Também ficou definido que o Congresso só poderia sustar processos criminais depois, e não antes, do recebimento da denúncia na Justiça. Assim, limitou-se o poder da Câmara e do Senado, que desde então podem apenas deliberar sobre dar ou não imunidade a um parlamentar que já virou réu. Essa combinação faz com que o ônus diante da opinião pública seja muito maior. Caso a PEC da Blindagem seja aprovada com a redação atual, todos esses avanços, que fizeram bem à democracia, serão desfeitos.

Não apenas isso: passaremos a uma situação ainda pior do que aquela que vigorou entre 1988 e 2001. A PEC da Blindagem restringe não apenas o alcance da Justiça criminal, como acontecia antigamente, mas também da Justiça cível, onde correm, por exemplo, ações de improbidade administrativa e ações civis públicas. Isso porque a proposta incumbe o STF de toda e qualquer medida cautelar contra parlamentares. Um pedido para bloquear os bens de um deputado no intuito de garantir que, se condenado em ação cível, ele possa ressarcir os cofres públicos, digamos, hoje é julgado na primeira instância. Com a PEC, ele poderá pular direto para o Supremo. 

Impossível não notar a ironia de fundo: o grupo que articulou a PEC, embora estivesse querendo peitar o STF, pode acabar dando ao tribunal ainda mais poder para decidir sobre os processos envolvendo os parlamentares. Mas nada é tão ruim que não possa piorar. É provável que no futuro, caso isso aconteça, os deputados e senadores se organizem para lutar por uma interpretação do texto segundo a qual mesmo as medidas cautelares tenham de passar pelo crivo do Congresso.

Mas o aspecto mais aberrante da PEC é, sem dúvida, a extensão do foro privilegiado para presidentes de partidos. A um só tempo, isso desacredita dois argumentos que os defensores da proposta têm apresentado. O primeiro é de que a PEC é uma proteção à função parlamentar, e não uma blindagem contra a Justiça. Evidentemente, presidência de partido não é função parlamentar. O segundo argumento é a mesma cantilena de sempre: o STF está com poderes exacerbados e precisa ser contido. Ora, conceder foro privilegiado a presidentes de partidos só aumentará o rol de políticos ao alcance do tribunal.

A anistia, se aprovada, tem grandes chances de ser julgada inconstitucional pelo STF. Sabemos disso não apenas pelos recados que os ministros deram durante o julgamento do núcleo central da trama golpista, mas também pelos precedentes jurídicos. Não faz muito tempo que o Supremo julgou inconstitucional o indulto que Bolsonaro, à época na Presidência, concedeu ao ex-deputado Daniel Silveira.

Há margem, contudo, para mudanças legislativas nos artigos do Código Penal que punem os crimes contra o estado democrático de direito e que levaram à condenação de Bolsonaro, dos militares e da turba do 8 de janeiro. Seguindo o princípio jurídico de que mudanças nas leis têm efeito retroativo quando são favoráveis aos réus e condenados, esse é um caminho que pode, eventualmente, resultar em penas menores para os golpistas. Mas há formas e formas de fazer isso.

Supondo que o Congresso decida aliviar a barra dos invasores do 8 de janeiro, mas não dos líderes do golpe, seria possível criar uma emenda reduzindo a pena especificamente de quem é mero executor material desses crimes e participante de menor importância, tendo agido por instigação de lideranças golpistas. Nessa hipótese, caberia à Justiça decidir, caso a caso, quem se beneficiaria dessa redução de pena (não seria o caso de Bolsonaro, que agiu como líder da empreitada).

Uma eventual prisão domiciliar por razões de saúde, hipótese que está na mesa e com a qual alguns bolsonaristas parecem se contentar, não exige qualquer mudança legislativa, pois já é aceita no atual entendimento da Lei de Execução Penal. Para chegarmos a essa discussão, no entanto, é preciso primeiro que se defina em qual presídio Bolsonaro ficará preso. Em seguida, os responsáveis por esse estabelecimento deverão informar se são ou não capazes de prestar o atendimento médico de que o ex-presidente necessita. Só em caso de impossibilidade, a prisão domiciliar, que é excepcionalíssima, deverá ser garantida. Se Bolsonaro for tratado como qualquer outro réu do Brasil, o esperado é que esse debate aconteça quando ele já estiver recolhido à sua cela. Em hipótese alguma a concessão de prisão domiciliar pode ser, por exemplo, condição para que ele se entregue às autoridades.

A democracia brasileira é cambaleante e já sofreu muitos reveses. Mas nada se compara à desmoralização que vai sofrer caso Bolsonaro e seus comparsas sejam anistiados por seus crimes, ante a fartura de provas existente contra eles. Felizmente, essa hipótese parece, por ora, remota, mas não devemos descuidar. Os acontecimentos desta semana ajudaram a jogar fumaça em um processo que deveria ser cristalino. Deram força ao cinismo, à descrença e à desilusão na política que alimentam as formas mais destrutivas de populismo. Para a população, fica a mensagem de que cabe ao Congresso decidir quem pode ou não ser punido pelos crimes que pratica, seja um golpe de Estado ou um roubo de emenda parlamentar.



Piauí Folha

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