As maçãs que nunca envenenei

Édifícil colocar em palavras a função da literatura, mas uma das definições que mais se aproximam do que eu acredito é a do poeta russo Joseph Brodsky. “Aquele que escreve um poema o escreve porque escrever em versos é um extraordinário acelerador de consciência.” Essa frase nunca saiu da minha cabeça. Lembro dela sempre que constato como os livros foram e ainda são a minha fonte de prazer e expansão.

Lá em casa temos o hábito de ler para os meus enteados antes de dormir. Como são três (dois meninos e uma menina), eu e o pai delas, meu marido, nos dividimos na contação de histórias. Seja qual for a trama, o tamanho, a editora, os livrinhos têm uma semelhança: ‘’papai e mamãe’’ aparecem como figuras fixas, inalteradas.

Nada muito inesperado. Mas isso começou a me incomodar quando um dos meus enteados fez uma lição de casa cujo objetivo era “circular as pessoas que moram com você”. As opções eram, claro: mãe, pai, irmão, tio, avós, primos, papagaios, lontras, iguanas, periquitos, cães, ornitorrincos, vozes da cabeça. Tudo menos madrasta e padrasto. Ele perguntou: “E agora? Onde eu marco a nossa opção?”

Dali em diante, comecei a procurar livros infantis que tivessem representações de madrastas reais. Dessas como eu e você, que cuidam, educam, amam e são referências de maternidade para crianças que não gestamos mas decidimos criar. Encontrei um livro fofo, ilustrado, bem-intencionado. Chama-se Ué! Má minha madrasta não é! Foi escrito por Ana Paula Beling e publicado pela Rizoma Projetos Editoriais.

A história gira em torno de um menino que tem uma madrasta muito legal e estranha o fato de ela ser… legal. Ele, como muita gente, se habituou ao estereótipo da madrasta má, que oferece maçãs envenenadas, disputa a atenção do pai e obriga os enteados a limparem o chão de uma mansão com uma escova de dente (ai se sobrar alguma sujeira). Desconfiado, o protagonista parte para uma investigação e enumera todas as coisas legais que fazia com a madrasta, como andar de bicicleta, ouvir histórias antes de dormir, estudar para as provas e brincadeiras mil. No fim do livro, ele concluiu: “Ué, a minha madrasta não é má!”

Comprei o livro e li para os meus enteados, gêmeos que na época tinham 6 anos de idade. Não conseguia esconder minha animação. Pensei: “É agora! Esse livro vai acabar com séculos de preconceito!” A cada página virada, eu espiava o rosto deles pra ver a reação. Terminei a história e fui surpreendida por olhares atônitos e desconfiados, seguidos de perguntas. “Geca, não entendi a história. Por que ele achou que a madrasta dele seria má? Elas não são todas legais, como você?”

Fiquei com cara de paisagem. No fim, fui logo eu quem, acidentalmente, apresentou aos meninos a má fama das madrastas. Mas tentei olhar pelo lado positivo: acho que foi um sinal de que estou ajudando a criar seres humanos com uma experiência saudável de madrastidade. Um vínculo forte, diário e amoroso. Esse episódio me motivou a brigar ainda mais aguerridamente pela boa reputação das madrastas.

Somos injustiçadas a todo momento na ficção. Em março deste ano, ao buscar uma programação para o fim de semana em família, vi que o filme Branca de Neve teria um remake e que a data de lançamento estava próxima. Com um fio inocente de esperança, desejei que a Disney tivesse refletido sobre o estigma da madrasta malvada, presente no filme original, e alterado a história. É claro que me frustrei.

Atento aos debates sociais e ao problema dos estereótipos no cinema, o remake dirigido por Mark Webb foi cuidadoso em muitos aspectos. Substituiu a menção a “anões”, por exemplo, por “criaturas mágicas”. O retrato da madrasta, contudo, continua o mesmo daquele feito pelos irmãos Grimm e adaptado ao cinema pelos estúdios Disney em 1937.

Eu amo a Disney. Tenho 29 anos e meu pijama mais confortável tem estampa de Lilo & Stitch. Ganhei um cocker spaniel aos 10 anos de idade e o batizei como Simba, em homenagem a O Rei Leão. Possivelmente o primeiro filme a que minha filha assistirá, quando já tiver idade, será Vida de Inseto. Corro para o cinema com meus três enteados toda vez que a Disney lança um filme novo. Os peixes do aquário da casa onde cresci, em Araruama (RJ), se chamavam Nemo e Dory. E Up: Altas Aventuras me fez chorar em 1 hora e 36 minutos a quantidade prevista para o mês todo.

Mas me parece injusto e anacrônico que a figura da madrasta siga sendo demonizada sem nuances. Filmes e livros têm o poder de influenciar crianças e adultos pela vida toda. Não é de espantar que os estigmas e preconceitos se perpetuem por tanto tempo. Estão lá sempre que me apresento como madrasta e recebo olhares desconfiados, ou mesmo quando ouço piadas bem-intencionadas dizendo que sou uma “boadrasta” – expressão cruel porque pressupõe que toda madrasta é, por motivo etimológico, malvada. Na verdade, a palavra madrasta vem do latim mater, que significa mãe. Madrinha e matriarca compartilham da mesma origem, mas só as madrastas sofrem com uma interpretação negativa da palavra.

Pudemos comemorar o progresso de muitas questões femininas nas últimas décadas, mas essa continua estagnada, o que é muito prejudicial para os debates de parentalidade e gênero. O feminismo não costuma dar muita atenção à mulher que é madrasta, um parentesco comum no Brasil. Em 2022, o país registrou 420 mil divórcios, o maior número desde 2007, quando o IBGE começou a divulgar essa estatística. Não sabemos quantos desses casais tinham filhos, mas é seguro presumir que não eram poucos. Madrastas e padrastos vão entrar em cena, como sempre entraram, e não é bom para ninguém que sejam vistos com desconfiança.

Em 2020, uma petição online reuniu 1.814 assinaturas para pressionar os estúdios Disney a realizarem um filme com uma madrasta boa (o que, por ora, ainda não se concretizou). Em 2022, um abaixo-assinado promovido pela influenciadora Mariana Camardelli fez o Google, que reproduz verbetes do Oxford Languages, mudar o significado da palavra madrasta. Até então, constava como “mulher má, incapaz de sentimentos afetuosos e amigáveis; aquilo que provém de vexames e dissabores em vez de proteção e carinho”. Virou “mulher em relação aos filhos anteriores da pessoa com quem passa a constituir sociedade conjugal.’’ O significado de padrasto não precisou ser alterado, porque sempre foi o mesmo: “Homem em relação aos filhos anteriores da mulher com quem passa a constituir sociedade conjugal.”

Livros recentes como A última coisa que ele me falou (2022), de Laura Dave – que virou série na Apple –, retratam madrastas que maternam, cuidam, se envolvem na vida doméstica e demonstram ambivalências típicas de qualquer ser humano. Que venham da literatura outros exemplos para nos redimir. (Aliás, não custa lembrar: Machado de Assis considerava sua madrasta, Maria Inês da Silva, uma segunda mãe. A doceira foi responsável por lhe ensinar as primeiras palavras e é vista pelos biógrafos do escritor como a sua primeira mestra. Devemos muito a ela.)

Aorigem dessa má fama não é clara, mas sabemos que não é recente. O estereótipo nos acompanha, no mínimo, há séculos, favorecido por um problema básico: a madrasta é a pessoa que substitui a figura muitas vezes idealizada da mãe. No livro A psicanálise dos contos de fadas (1976), Bruno Bettelheim, um psicólogo austríaco especialista em histórias do gênero, explica que as madrastas funcionam como representação dos elementos negados conscientemente no conflito das crianças que idealizam suas mães e as tomam como essencialmente boas. Quando essa mesma mãe se mostrava incapaz de sustentar a aura imaculada, ela automaticamente era vista como madrasta. Foi preciso, então, encontrar uma figura que reunisse todas as características ruins que uma mãe não poderia ter, como ciúme, inveja e raiva, para assim criar uma ideia alternativa de maternidade.

A primeira edição do conto A Branca de Neve, por exemplo, não continha a tão temida madrasta. A personagem foi adicionada pelos irmãos Grimm em 1819 para desempenhar o papel apontado por Bettelheim: concentrar os sentimentos ruins que, se fossem demonstrados pela mãe, abalariam sua incontestável santidade.

A fórmula se tornou um lugar comum. Lá está a madrasta megera em João e Maria, outro conto antiquíssimo, sem contar Cinderela. O estereótipo também continua presente na ficção contemporânea. Filmes clássicos de Sessão da Tarde, como Operação cupido (1999), nos fazem torcer para que as crianças infernizem a mulher que namora seu pai. Novelas como Avenida Brasil (2012) reforçam em nós, no fundo, a crença de que toda madrasta tem um quê de Carminha, a vilã diabólica.

Torço para que esse estereótipo, como muitos outros, caia em desuso. A verdade é que a ficção pode até tentar, mas a realidade se impõe no dia a dia. É assim quando sua enteada muda de time por influência sua. Quando seu enteado diz que tem “duas mães” e você precisa explicar que mãe é mãe, madrasta é madrasta, que as duas relações são lindas e uma não exclui a outra. Quando você fica a madrugada inteira de vigília na beira da cama monitorando a febre da criança. Quando você precisa explicar pela centésima vez por que comer feijão é importante (ou pela milésima vez que os vegetais também são fundamentais). Quando sua enteada te inclui na árvore genealógica dela no trabalho de escola. Quando você exige que o colégio dos seus enteados inclua uma terceira cadeira na reunião de responsáveis (e não de pais, atenção). Ou quando sua enteada chora de emoção pela primeira vez na vida ao descobrir que você está grávida e ela vai ganhar uma irmã.

Apesar dos rótulos, preconceitos e olhares desconfiados, ser madrasta é uma das experiências mais corajosas e desafiadoras que uma mulher pode viver. Amando, educando e criando crianças que não nasceram de nossas barrigas, nós ajudamos a nova geração a testemunhar e, quem sabe, perpetuar uma imagem mais positiva de nós mesmas. Torço para que, diferentemente do garotinho no livro de Ana Paula Beling, nenhuma outra criança se espante ao constatar que sua madrasta é boa gente.



Piauí Folha

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