Escândalo no Congresso Nacional. Uma investigação jornalística revelou que ao menos cinco senadores e 23 deputados federais participaram de um esquema de desvio de dinheiro, numa farra que custou aos cofres públicos mais de 300 milhões de reais. A bandalheira era operada com empresas de fachada e contratos fraudados, fazendo transbordar dinheiro para o bolso dos parlamentares mas também para empresários. A verba desviada, é claro, deveria ter sido investida em melhorias na vida da população.
Tudo isso soa familiar, como os escândalos a que assistimos dia sim, dia não no Jornal Nacional. Mas essa história não aconteceu no Brasil, e sim nas Filipinas, do outro lado do mundo. Dinheiro controlado pelo Congresso, desembolsado pelo governo federal e sequestrado por interesses privados. Um circuito muito parecido com o orçamento secreto. A diferença é que, nas Filipinas, aconteceu em 2013, época em que, por aqui, as emendas parlamentares ainda não eram tão presentes nas páginas policiais.
O esquema foi revelado pelo jornal Philippine Daily Inquirer, que publicou uma série de reportagens detalhando os roubos ao Fundo de Assistência para o Desenvolvimento Prioritário (PDAF, na sigla em inglês). Funcionava assim: Janet Lim Napoles, uma empresária cujos rolos com a Justiça já eram conhecidos, criava dezenas de fundações e ONGs de fachada, muitas das quais se diziam especializadas em insumos agrícolas. Ela então arregimentava parlamentares dispostos a enviar emendas para essas empresas fictícias. No fim, entre 40% e 60% do dinheiro ia para o bolso deles, que pagavam uma comissão a Napoles. Para garantir que nada fosse descoberto, a propina rolava solta.
Um dos senadores que se beneficiou do esquema, segundo o jornal filipino, foi Manny Villar, um dos homens mais ricos do país e candidato a presidente em 2010. A investigação aponta que ele recebeu, como propina, 30% do valor destinado a um projeto de computação implementado pelo Departamento de Transporte e Comunicações. Além disso, Villar destinou cerca de 6 milhões de reais para reparar e construir estradas em uma região onde, coincidentemente, ele vinha erguendo um condomínio de casas de luxo (no Brasil, esse papel coube ao ex-ministro das Comunicações, Juscelino Filho, que usou emendas para construir uma estrada que beneficiava fazendas suas e de seus parentes).
A investigação revelou só uma pontinha da história. Um relatório da Comissão de Auditoria, um órgão independente nas Filipinas, divulgado no mês seguinte à publicação das reportagens, detectou irregularidades em 772 projetos que valiam o equivalente a mais de 600 milhões de reais. Eles haviam sido financiados com a ajuda de doze senadores e 180 deputados entre os anos de 2007 e 2009. Das 82 ONGs de fachada que implementaram os projetos, dez eram ligadas a Napoles. Outros parlamentares foram implicados nos meses seguintes, mas, depois que a poeira baixou, poucos foram efetivamente responsabilizados.
O PDAF tinha um modelo de funcionamento que não existe no Brasil, mas que é comum a outros países do Sul Global. A cota de dinheiro reservada a cada parlamentar filipino era dividida em projetos considerados soft – isto é, puramente assistencialistas, como o pagamento de despesas médicas e bolsas de estudo para seus eleitores – e projetos hard, voltados principalmente para infraestrutura. Os recursos soft eram pagos na forma de cheques, certificados e vouchers, não raro acompanhados de uma foto ou uma assinatura do parlamentar responsável, que levava os louros pelo gesto de generosidade. As emendas nas Filipinas estabelecem uma relação de clientelismo muito mais direta que no Brasil.
Por outro lado, as semelhanças com a disfuncionalidade brasileira são desconcertantes. Pouco antes de o escândalo nas Filipinas estourar, em 2013, a parcela do orçamento federal dedicada ao PDAF tinha aumentado de forma substancial e veloz. O presidente Benigno Aquino II, tão logo assumiu o governo em 2010, expandiu as verbas do programa em 223%. Em 2012, elas já somavam 24 bilhões de pesos filipinos – o equivalente a 2,4 bilhões de reais. Movimento semelhante aconteceu com as emendas parlamentares no Brasil, que desde 2019 tiveram um crescimento acima de qualquer parâmetro econômico – inflação, PIB etc. Dois anos depois, o orçamento secreto foi enfim revelado pela imprensa.
Este ano, as emendas parlamentares no Brasil devem consumir, de acordo com as estimativas mais conservadoras, 50,4 bilhões de reais, o que é cerca de 25% do orçamento discricionário da União (isto é, o orçamento que não é gasto com despesas obrigatórias e pode ser usado em investimentos). Se continuarem nesse ritmo, as emendas vão engolir 100% dessa parcela do orçamento até 2028. Elas crescem mais rápido que as outras despesas públicas, comprimindo a (já pequena) capacidade de investimento do governo.
Tanto nas Filipinas quanto no Brasil, fracassaram até agora as tentativas do Poder Executivo de dar um bom destino às emendas parlamentares. Em 2012, o governo filipino enviou para o Congresso uma lista de projetos prioritários nos municípios mais pobres do país, sugerindo que os investimentos fossem concentrados neles. Pouco adiantou. Como demonstrou um levantamento do Philippine Center for Investigative Journalism, os recursos distribuídos por senadores e deputados continuaram sendo enviados para as regiões mais ricas do país. O governo recomendava a construção de unidades de saúde e a ampliação da infraestrutura de saneamento em áreas rurais; os parlamentares, em vez disso, investiram em ginásios esportivos, praças, estradas e pontes, que costumam dar mais dividendos eleitorais. No Brasil, Lula recentemente tentou direcionar recursos das emendas parlamentares para o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), mas a ideia também não prosperou.
Nas Filipinas, ficou claro que a dinheirama das emendas favorecia, em alguns casos, as famílias dos parlamentares. Uma reportagem mostrou que alguns deles destinavam verbas preferencialmente para cidades onde seus pais ou outros parentes ocupavam cargos políticos. É assim também no Brasil, e não de forma menos descarada. Basta lembrar que um dos maiores beneficiários das emendas assinadas pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), é seu pai, Nabor Wanderley, prefeito reeleito de Patos (PB).
Não raro, no Brasil, os parlamentares defendem o livre uso das emendas parlamentares dizendo que conhecem bem seus redutos eleitorais, um conhecimento que, segundo eles, falta aos burocratas de Brasília. Esse argumento, não bastasse ser uma obviedade, é insuficiente, porque o conhecimento de uma determinada região não substitui a importância de haver parâmetros apontando, com base em dados e outras evidências, quais cidades precisam de mais recursos do que outras.
Um levantamento do Estadão mostrou que 522 cidades brasileiras que deram maioria de votos a candidatos que não se elegeram em 2018 foram prejudicadas, mais tarde, na distribuição de emendas parlamentares. Nesses municípios viviam 13 milhões de pessoas que, por não terem padrinhos políticos, receberam muito menos recursos federais do que a média, sem que para isso houvesse uma justificativa técnica. Cidades vizinhas umas das outras passaram a ter níveis radicalmente distintos de serviços de saúde e educação. No Piauí, o município de João Costa, reduto eleitoral do senador Ciro Nogueira (PP), tem estádio de futebol moderno, três postos de saúde, creche nova e dezenas de ônibus escolares e ambulâncias. A duas horas de distância dali, o município de Brejo do Piauí, embora seja mais populoso, pena com estradas esburacadas, duas ambulâncias e atendimento de saúde precário.
Outro problema é o desequilíbrio regional produzido pela sobrerrepresentação – de jure ou de fato – de alguns estados no Congresso, especialmente nos cargos mais poderosos. Foi o que mostrou uma outra reportagem do Estadão: das cidades brasileiras que não são capitais, as três que mais receberam recursos do orçamento secreto entre 2020 e 2021 – Petrolina (PE), Tauá (CE) e Santana (AP) – tinham padrinhos importantes no Congresso, entre eles o então líder do governo Bolsonaro no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), e o então presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), que hoje está de volta ao cargo. As cidades do Amapá, aliás, costumam aparecer entre as que mais recebem emendas por habitante.
Erradicar a desigualdade regional é, de acordo com a Constituição, um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Não há qualquer asterisco que condicione isso a votar no parlamentar “certo”. Os recursos das emendas parlamentares têm privilegiado cidades pequenas que, sem dúvida, têm déficits estruturais e são superdependentes de transferências federais. Mas a verdade é que muitas delas não deveriam sequer existir como unidade federativa autônoma. Um estudo da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) com dados de 2022 apontou que, em 30% dos municípios brasileiros, as receitas oriundas da atividade econômica dentro de suas fronteiras não supriam sequer os custos de manutenção da prefeitura e da Câmara de Vereadores.
Em vez de promover um ciclo virtuoso de desenvolvimento econômico, as emendas parlamentares estão agravando desigualdades e remando em sentido contrário à responsabilidade fiscal. A consultoria de orçamento da Câmara mostrou, por exemplo, que os recursos das emendas de bancada estadual têm se destinado cada vez mais ao custeio da máquina pública – que consumiu 57% das verbas em 2024, contra 27% em 2017. E só piora: uma nova regra aprovada em julho pelo Congresso permite que as emendas paguem os salários de servidores municipais da saúde. É uma afronta à Constituição, que, corretamente, veda o uso de emendas para pagamento de despesas com o pessoal. Afinal, o tamanho e a frequência das emendas varia de ano a ano, legislatura a legislatura, sujeitos aos ventos políticos de cada época. O salário dos servidores não pode depender disso, e incentivar o aumento dessas despesas sem lastro é uma receita para o descalabro fiscal.
Preparando-se para as eleições de maio de 2013, a Comissão Eleitoral filipina definiu, em abril de 2012, uma regra proibindo a realização de determinados atos, como obras, desembolso de recursos públicos e realização de doações nos meses anteriores à votação. No entanto, uma semana antes do período eleitoral começar, a mesma comissão aprovou uma exceção que autorizava a liberação de recursos do Fundo de Assistência para o Desenvolvimento Prioritário (PDAF). No Brasil, foi o próprio Congresso que alterou, às vésperas das eleições de 2024, as regras de liberação das emendas para garantir que sua execução acontecesse no auge das campanhas, beneficiando padrinhos e apadrinhados.
O impacto das emendas parlamentares já se fez sentir nas eleições de 2022, quando parlamentares do Centrão turbinaram suas campanhas com esses recursos. Mas foi nas eleições municipais de 2024 que o esquema ficou escancarado. As emendas aprovadas no Congresso foram o maior cabo eleitoral de prefeitos, como apontou Cila Schulman em artigo na piauí. Um levantamento da Folha de São Paulo focado em cidades pequenas e médias mostrou que, entre os 116 prefeitos que mais receberam recursos de emendas parlamentares, 114 se reelegeram – uma taxa de sucesso de 98%. De modo geral, a taxa de reeleição de prefeitos no ano passado foi de 83%, a maior dos últimos vinte anos.
Tanto dinheiro é gasto sem que os cidadãos possam conhecer os critérios e mesmo os parlamentares responsáveis pelos projetos. Daí a alcunha orçamento secreto. Mas mesmo isso, que parece uma peculiaridade brasileira, os filipinos conheceram antes. Na época do escândalo do PDAF, o secretário do Orçamento das Filipinas reconheceu que, embora o Congresso divulgasse os projetos que recebiam emendas parlamentares, não era possível rastrear seus beneficiários nem os resultados obtidos. Faltavam mecanismos para identificar, suspender e punir conflitos de interesse, fraudes, superfaturamentos e propinas.
O escândalo nas Filipinas abalou um sistema que estava em vigor desde, no mínimo, a década de 1990. Alguns especialistas argumentam que tudo começou, na verdade, com a colonização americana (1898-1946), já que os Estados Unidos também são adeptos do chamado congressional pork barrel, modelo que embasa o PDAF (a tradução de pork barrel é barril de porco, e guarda semelhança com a ideia do curral eleitoral). A repercussão da roubalheira causou protestos enormes, como a “Million People March”, ocorrida em Manila em agosto de 2013. Os manifestantes pediam a extinção do fundo e a punição dos envolvidos no esquema. Nas ruas, via-se pessoas vestindo máscaras de porcos, em referência ao pork barrel. Não apenas os parlamentares saíram queimados disso tudo, mas também o presidente.
A mobilização deu o impulso necessário para que a Suprema Corte das Filipinas declarasse, em setembro de 2013, a inconstitucionalidade do PDAF. Em decisão unânime, o tribunal argumentou que esse mecanismo do Congresso violava o princípio da separação dos Poderes, já que atribuía a parlamentares o poder de direcionar recursos a projetos específicos e negava ao presidente o direito de vetar deliberações legislativas. Violava também, segundo os juízes, o princípio da não delegação do Poder Legislativo, pois implicava o pagamento de projetos que não estavam originalmente na lei orçamentária. Além de tudo, o PDAF prejudicava a accountability e minava a autonomia dos governos locais.
Poderia ter sido o fim feliz de uma história conturbada. Mas em agosto de 2014 estourou um novo escândalo: a presidente da Comissão de Educação Superior do governo foi gravada afirmando que os parlamentares ainda controlavam verbas substanciais e poderiam escolher os beneficiários de bolsas de estudos. Tudo mudou para nada mudar. Depois da decisão da Suprema Corte, os recursos passaram a ser alocados formalmente nos ministérios e órgãos do Poder Executivo, mas continuaram sob controle dos parlamentares. Alcançaram, em 2025, o valor recorde de 731 bilhões de pesos filipinos – o equivalente a 71 bilhões de reais. Qualquer semelhança com o Brasil é mesmo uma semelhança.
As emendas parlamentares brasileiras, como se vê, não são jabuticabas. Não bastassem seus problemas, elas sequer são um exemplo de inovação dos políticos brasileiros. Embora não existam nos países desenvolvidos, ao menos não nesse formato, conforme demonstrou uma importante pesquisa conduzida por Marcos Mendes e Hélio Tollini, elas são bastante presentes abaixo da Linha do Equador. Um levantamento feito em 2010 pela ONG International Budget Partnership (IBP) identificou ao menos 23 países em que os parlamentares exerciam controle absoluto sobre uma parcela significativa do orçamento. Sob o título de Fundo de Desenvolvimento Local (Constituency Development Fund, CDF) ou uma expressão semelhante, diversos países instituíram esse mecanismo.
A maioria deles são países pobres, como Gana, Honduras, Quênia, Nigéria, Paquistão e Ruanda. Na Zâmbia, também foram identificadas graves irregularidades financeiras no gerenciamento de recursos do CDF nacional, incluindo desvios e falta de prestação de contas. Na Índia, foi revelado que interesses eleitoreiros afetaram a distribuição de recursos, com parlamentares concentrando a utilização de suas cotas nos meses anteriores às votações. No Quênia, havia problemas na priorização de projetos públicos, com duplicação e desperdício de recursos, além de deficiências nos processos licitatórios.
Em vez de aprender com os erros alheios, o Brasil parece estar se inspirando neles para seguir seu próprio caminho de escândalos e desperdícios fenomenais. A corrupção está não só nos desvios que alimentam bolsos (e cuecas) privados, mas também na captura das eleições pelo Centrão, em um ciclo vicioso que aprofunda o desequilíbrio entre Executivo e Legislativo. A ausência de transparência e de critérios técnicos mínimos na destinação de emendas só tem piorado a desigualdade regional. Os prefeitos dos 5.570 municípios brasileiros foram reduzidos a pedintes nos corredores do Congresso.
O Brasil, como se vê, tem seguindo à risca o roteiro das Filipinas, incluíndo as decisões do Supremo Tribunal Federal que, por conveniência, foram ignoradas pelos parlamentares. Resta saber se, como o país asiático, seremos também incapazes de sair do atoleiro em que nos metemos.