A perseguição constante por parte do governo faz parte do dia a dia dos jornalistas independentes que trabalham na China. Jiang Xue viveu isso na pele: em 2020, a polícia de Xi’an bateu na porta de sua casa e a levou à delegacia, após ela ter escrito um texto criticando o confinamento decretado pelo governo em razão da Covid. “Fiquei preocupada deles pegarem outras reportagens antigas para me incriminar, mas só fizeram algumas perguntas e voltei para casa logo depois”, afirmou. Mas os oficiais disseram que, se ela continuasse escrevendo artigos desse tipo, teria que “arcar com as consequências”. Jiang Xue participou da última mesa deste sábado (6) do Festival piauí de Jornalismo, onde foi entrevistada pela jornalista do Globo Thaís Oyama e pela coordenadora de diversidade da Folha de S.Paulo Flavia Lima, que também é conselheira do Instituto Artigo 220, entidade sem fins lucrativos que financia parte dos custos da piauí.
Jiang Xue é na verdade o pseudônimo de Zhang Wenmin. Ela é uma jornalista investigativa independente que revira a história oficial política e social chinesa. Com passagens por veículos nacionais como o China Digital Times, trabalhou como repórter e editora de 1998 a 2014, quando decidiu deixar o jornal China Business News devido ao aumento da censura na indústria midiática chinesa no governo de Xi. Os editores da publicação emitiram uma ordem na época: publicar apenas artigos que falassem positivamente do governo. “Além de perder a remuneração, perdi a segurança.”
Na China, imprensa e governo andam de mãos dadas. Desde 2012, após Xi Jinping assumir o comando do Partido Comunista da China, a imprensa tem tido um espaço cada vez menor. Jiang Xue lembra que, na época em que trabalhou em veículos nacionais, as redações recebiam diariamente notificações de assuntos proibidos de serem tratados, como forças armadas, corrupção, política de filhos, mortes em obras institucionais e prisão de pessoas. “Era como se tivesse uma cobra em cima da cabeça constantemente e ela pudesse me comer a qualquer momento”, relatou a jornalista no evento. Segundo ela, o partido comunista teme que falem a verdade sobre diversos temas nacionais, como a Revolução Cultural, a Grande Fome e a Covid.
Em um ensaio publicado em 2017 no WeChat, aplicativo de conversa chinês, Jiang Xue comentou sobre as restrições cada vez mais rígidas à liberdade de expressão e o desconhecimento das pessoas sobre sua própria história. “Se existe uma gaiola intangível sobre esta terra, conosco dentro dela, será que ela é imune à influência da inteligência? Por quanto tempo as pessoas comuns poderão ser mantidas longe do conhecimento comum que deveriam ter sobre o mundo?”
Os jornais chineses foram fundados no modelo soviético. Eram essencialmente órgãos de propaganda. A partir da década de 1990, a lógica mudou, já que a China apresentava um crescimento econômico que também incluía a mercantilização dos jornais e a necessidade de atrair leitores. “De 1989 a 2000 foi o período de ouro do jornalismo para mim”, disse Jiang Xue. Ela ressaltou que a censura e a repressão no governo chinês sempre esteve presente, mesmo no período de relativa abertura, mas “atualmente a censura é tão forte que o jornalista opta por não fazer mais uma cobertura. Antigamente lutávamos, hoje em dia nem lutamos mais.”
A censura, segundo Jiang Xue, também impede debates históricos mais profundos. Após a Revolução Chinesa liderada por Mao Tsé-Tung em 1949, a estrutura social foi alterada, com a repressão de movimentos sociais. Algumas estimativas indicam que entre 1958 e 1962, 45 milhões de chineses morreram de fome. As famílias passaram por esse trauma coletivo e, por causa da censura, houve um silenciamento social auto imposto para além do silenciamento histórico do governo. “Esse trauma nunca foi documentado, dado a devida importância e consequentemente, nunca foi tratado. A verdade tem que ser dita para que possa ser superado”, disse a jornalista chinesa.
O avô de Jiang Xue morreu durante a Grande Fome, aos 48 anos. Essa história marcou profundamente a família dela – e a história foi contada de geração para geração, influenciando sua decisão de se tornar jornalista.
Em uma reportagem publicada em 2019, Jiang Xue contou a história da Spark, uma revista criada em 1960, durante a Grande Fome, por estudantes que criticavam as políticas do Partido Comunista e narravam a realidade de milhares de pessoas que morriam de fome no país. A revista só teve um número, pois foi logo censurada pelo governo. A supressão de fatos, segundo Jiang Xue, impede a existência de uma memória nacional crível. “Estou fazendo o rascunho da história chinesa”, ela disse.
Mesmo em meio à vigilância, muitos chineses criam diariamente maneiras para burlar a censura: não dizem “censurado”, mas “harmonizado”, usam emojis para falar de determinados assuntos, letras de músicas para fazer jogo de palavras e colocam espaços a mais nos nomes de fontes, como advogados. A tecnologia tem ajudado jornalistas a refazer o modo de veicular notícias na China. “Mas a censura do governo também é rápida em acompanhar essa criatividade”, ressaltou Jiang Xue. Os conteúdos são instantaneamente apagados, mas deixam um vestígio na internet.
Jiang Xue deixou a China em 2022 após sofrer perseguições políticas e se mudou para os Estados Unidos, onde hoje observa com espanto os rumos do país sob Trump. Em entrevista ao New York Times em março deste ano, ela afirmou ver parentesco entre a situação atual do país norte-americano e aquela vivenciada na China. “Acabei de sair da frigideira para cair no fogo.”
Em maio deste ano, a Radio Free Asia (RFA), uma rádio americana de notícias do continente asiático, anunciou a demissão de cerca de 90% dos seus funcionários e o encerramento de vários dos seus serviços devido ao corte de financiamento pelo governo Trump. A rádio era um veículo importante para os chineses que queriam ter acesso a informações do país sem o intermédio do governo. Jiang Xue fazia trabalhos para o RFA, e foi cortada da equipe. “Achei que a censura fosse acontecer só na China, mas aconteceu nos Estados Unidos.”
Ao ser questionada no evento se voltaria para a China em algum momento para continuar fazendo jornalismo, Jiang Xue disse que tem vontade, mas que agora não seria um bom momento, pois se sente ameaçada. “Sair da China não quer dizer que não quero mais voltar, mas procuro uma maneira de melhorar minha terra”, disse. “O autoritarismo é morto. Nós somos pessoas vivas.”