Cármen Lúcia deu início a seu voto sob clima de alguma apreensão. Não porque houvesse dúvidas quanto a ela condenar Jair Bolsonaro e os demais réus da trama golpista, como fez, pois isso era mais do que esperado. Mas sim pela expectativa de que ela usaria parte de seu tempo para especificamente reagir ao voto de Luiz Fux. Na véspera, ele deu um voto que surpreendeu até mesmo o mais otimista dos advogados dos réus. Acatou teses que nem as próprias defesas haviam apresentado.
Em meio a um ou outro ponto relevante nas preliminares processuais, cuja discussão futura não deve ser negligenciada apenas por terem sido apresentados no pacote de nonsense de um voto que trouxe perplexidade ao mundo jurídico, Fux gastou quase quatorze horas para desfilar contradições que espantaram mesmo os piores críticos que nunca esperaram dele coesão ou coerência. Contradições com seu passado de sabido desprezo a teses defensivas próprias do verdadeiro garantismo, que beneficiariam acusados de furtos insignificantes e mulheres pobres presas, cujos habeas corpus ele sistematicamente nega. Contradições com sua passagem pela presidência do Supremo, quando, em 8 de setembro de 2021, assinou nota chamando de “antidemocráticas, ilícitas e intoleráveis” as mesmas falas que ontem ele minimizou como “declarações infelizes” e “discursos inflamados e irrefletidos”. Contradições com seus votos nos casos do 8 de janeiro, especialmente quanto aos crimes de organização criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. Contradições com a régua ética pela qual juízes devem se guiar, abstendo-se de comentários sem valor jurídico e politicamente explosivos, a exemplo da absurda alusão que fez a Adélio Bispo e à facada de 2018. Contradições, enfim, com a lógica básica da experiência e da vida, que guia o juiz de boa-fé na análise das provas, e jamais admitiria a condenação de Mauro Cid por executar um golpe em favor de Jair Bolsonaro, mas absolver Jair Bolsonaro por falta de provas em relação ao mesmo golpe que se considera provado para Mauro Cid.
Foi um verdadeiro chá de revelação de Fux. Bolsonaro já disse que tinha 20% do Supremo, em referência a Kássio Nunes Marques e André Mendonça. Ao encampar ideias que só se vê nos grupos de zap do bolsonarismo mais radical – como a afirmação de que verdadeiro crime contra a democracia foi o Mensalão –, Jair pode atualizar sua contabilidade. A postura de Fux na sessão desta quinta-feira (11), mantendo-se em silêncio, cabisbaixo e de olhos fixados no celular enquanto os demais ministros interagiam à vontade, inclusive mandando-lhe indiretas nada sutis, explicita sua posição como um outsider entre seus pares.
O voto de Cármen Lúcia foi claro, rápido e objetivo. Dissipando a apreensão do início da sessão, não polemizou com Fux. Começou pela discussão da acusação de organização criminosa, uma reação direta, embora não nominal, ao voto de véspera. Ao afirmar sua compreensão de que o crime estava caracterizado, Cármen Lúcia já explicitou que considerava ser Jair Bolsonaro o líder da organização, sacramentando a maioria necessária para condenar o ex-presidente por esse delito. Logo na sequência, concluiu rapidamente seu voto para acompanhar Moraes e Dino na íntegra, condenando todos os acusados por todas as imputações, ainda que sinalizando alguma possível divergência com o relator na dosimetria das penas.
Cristiano Zanin falou por último e afastou também algumas precauções que havia quanto à suas posições. A primeira dizia respeito à alegação de cerceamento de defesa, pelo chamado document dump – o assoberbamento das defesas por quantidades excessivas de documentos, para serem analisadas em prazo curto. Suspeitava-se que Zanin, que como advogado foi um célebre crítico de táticas de lawfare e defensor de prerrogativas da advocacia, pudesse ser sensível a ela. Mas ele rejeitou o argumento, como rejeitou também as demais preliminares, inclusive a relativa à nulidade da delação de Mauro Cid, pela qual algumas defesas, especialmente a de Braga Netto, muito se bateram.
Já se passavam das seis da tarde quando a palavra voltou ao relator, que iniciou a dosimetria das penas. Moraes lembrou a forma de cálculo das penas, que pelo Código Penal se dá em três fases, e recuperou também a jurisprudência da Primeira Turma na dosimetria dos casos do 8 de janeiro, sugerindo que as penas dos réus do núcleo crucial, mesmo as menores, precisariam ficar acima do patamar daqueles condenados. Possivelmente seu objetivo era também o de estimular o ministro Fux a guardar no julgamento de hoje os mesmos padrões que já havia aplicado em centenas daqueles casos. Fez pouca diferença, pois Fux, embora pudesse fazê-lo, optou por não votar as penas dos réus que absolveu – praticamente todos.
Na fase do cálculo das penas, quem respirou aliviado foi Mauro Cid. Sem deixar de apontar omissões do colaborador, Moraes reconheceu a efetividade de sua cooperação e concedeu-lhe todos os benefícios que ele havia acordado com a Polícia Federal. Cid saiu-se com uma pena de dois anos de reclusão, em regime aberto. No extremo oposto ficou Bolsonaro, o líder da organização criminosa: 27 anos e três meses. Um pouco abaixo ficou Braga Netto, com 26 anos. Anderson Torres e Almir Garnier tiveram a pena fixada em patamar ligeiramente inferior, em 24 anos. As penas menores, mas ainda assim altas, ficaram para Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Alexandre Ramagem: respectivamente, 21 anos, 19 anos e 16 anos, 1 mês e 15 dias de prisão com perda do mandato parlamentar. Ramagem e Torres perderão os cargos de delegados da Polícia Federal. Todos foram declarados inelegíveis pelo prazo de oito anos.
Os réus devem iniciar o cumprimento de suas penas em regime fechado. A questão do local de recolhimento de Bolsonaro há de ser um debate à parte. O tribunal precisará decidir o peso que devem ter tanto sua condição de militar reformado, embora o Exército já tenha dito que não deseja recebê-lo como hóspede carcerário, quanto sua condição de ex-presidente da República, que não lhe confere em si direito a tratamento diferenciado, mas torna-o pessoa cuja segurança merece especial atenção, como ocorreu com Lula. Por isonomia, é possível que sua cela seja um ambiente análogo à sala da Polícia Federal onde Lula ficou detido. A condição de saúde de Bolsonaro também é fato que deve ser considerado: é certo que o ex-presidente buscará a chamada prisão domiciliar humanitária, que não deve ser concedida antes de uma perícia médica avaliá-lo, e os responsáveis pelo estabelecimento onde ele estiver trancafiado responderem se há, ou não, condições para que ele receba acompanhamento médico adequado lá mesmo.
Antes de se falar em cumprimento de penas, há que se aguardar o trânsito em julgado da decisão, porque – ao contrário do que defendia o ministro Luiz Fux quando esse debate foi travado no STF e interessava diretamente a Lula – o início de cumprimento de pena criminal pressupõe trânsito em julgado da decisão condenatória, esgotando-se todos os recursos cabíveis. Além de embargos de declaração, um recurso que raramente muda o resultado do que foi decidido. Assim, as defesas devem buscar levar o caso ao plenário do STF por meio dos chamados embargos infringentes. Para que sejam bem sucedidos, o Supremo terá de mudar o entendimento que vem adotando desde 2018, quando (a meu ver erradamente) passou a exigir dois votos absolutórios, e não apenas uma divergência qualquer, para recebimento desse recurso. O cabimento dos embargos deve ser a principal questão jurídica a animar o restante do julgamento.
À medida em que se fecham as cortinas de seu julgamento do Supremo, Jair Bolsonaro e os demais réus devem voltar suas esperanças e seus esforços para as instâncias políticas. É esperado, em primeiro lugar, que seus apoiadores deflagrem desde logo uma visceral guerra contra o Supremo. Se nos últimos tempos esse combate está sendo protagonizado pelos bolsonaristas que estão sob a guarda e proteção de Donald Trump, como Paulo Figueiredo e Eduardo Bolsonaro, não causará surpresa se aqueles que de uns tempos para cá observaram relativo e estratégico recato agora voltem à carga com tudo contra o tribunal. Idealmente, para os casos em que os membros da falange sejam também parlamentares, suas próprias casas legislativas deveriam enquadrá-los, mas não há qualquer esperança de que isso ocorra: se nem Eduardo Bolsonaro é incomodado pelas instâncias disciplinares da Câmara, ninguém mais será. Com isso, seguiremos no diapasão de sempre: os mesmos partidos que falam em pacificação pela anistia criam todos os estímulos para que os mais radicais deputados e senadores minem qualquer paz possível com seus ataques ao tribunal.
A segunda consequência esperada é que o bolsonarismo deva jogar todas as suas fichas nas eleições para o Senado e, claro, pela Presidência da República. Se fizerem um cálculo racional, Jair e seus filhos, especialmente Eduardo, devem parar de produzir confusão em torno da definição do candidato do campo bolsonarista, pois o futuro do pai fora da prisão dependerá em grande medida do sucesso dessa candidatura. O Senado, que será renovado em dois terços em 2026, é a casa onde começam e terminam os processos de impeachment de ministros do STF, o que deve se tornar uma obsessão bolsonarista tão grande quanto a anistia hoje o é. Seja para a presidência, seja para o Senado, “acabar com a ditadura da toga” será o bordão de campanha mais adotado Brasil afora.
Restam ainda as incógnitas que vêm pelo futuro da política em geral. O próximo presidente da República terá a oportunidade de indicar ao menos três ministros para o Supremo. Se for um bolsonarista, os três ministros que hoje Bolsonaro pode considerar como “seus” chegarão a cinco – pois um deles, Fux, sairá por aposentadoria compulsória. Nesse cenário, logicamente, qualquer iniciativa para desfazer as condenações que hoje foram encaminhadas passaria a ter mais chances de prosperar. Ainda mais se as ameaças ao Supremo vindas de um Senado mais bolsonarizado forem suficientemente concretas. A conclusão das ações penais contra o golpe é histórica e deve ser comemorada, mas ainda falta chão até o fim da maratona pela defesa da democracia.