O golpe segundo o relator

A aguardada sessão de julgamento da tentativa de golpe nesta terça-feira (9) começou com muitas certezas e algumas dúvidas. Nas questões principais – se houve tentativa de golpe de Estado e de abolição violenta do estado democrático de direito, se esses crimes são cumulativos e qual foi a responsabilidade jurídica dos principais acusados –, o desfecho foi o que se esperava. Em um voto detalhado e objetivo, com indicação exaustiva de provas, o relator Alexandre de Moraes concluiu pela procedência integral das acusações apresentadas pela Procuradoria–Geral da República (PGR) contra os oito réus.

Em processos criminais colegiados, a posição do relator, que é quem melhor conhece o caso, costuma ter ascendência sobre os demais julgadores. O voto de Flávio Dino seguiu essa lógica. O ministro acompanhou Moraes na íntegra, dando apenas um indício de que discorda da importância atribuída a três acusados (Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Alexandre Ramagem) na trama golpista. Essa discordância, porém, deve se refletir somente na dosimetria das penas, que ainda não foi discutida. Dino aproveitou a oportunidade para mandar recados: primeiro ao Legislativo, frisando que eventual anistia aos golpistas seria inconstitucional, e depois ao governo Trump, dizendo que ministros do STF não temem perda de cartão de crédito nem se intimidam com tuítes. 

Com base no que vimos em etapas anteriores do processo, não se espera que Cármen Lúcia tenha divergências relevantes, o que já deve bastar para sacramentar o destino dos réus, impondo a eles a decisão de Moraes ou algo muito próximo dela. O saldo da sessão de hoje foi especialmente ruim para Bolsonaro e Braga Netto, que tanto no voto de Moraes quanto no de Dino foram retratados como peças centrais da organização criminosa. Heleno, Nogueira e Ramagem, por outro lado, ganharam um fio de esperança com o voto de Dino.

A voz dissonante deve ser a de Luiz Fux, que já no início da sessão adiantou que trará posições alternativas às de Moraes. Tudo indica que ele fará ressalvas à validade da delação de Mauro Cid. Poderá ainda defender que o crime de tentativa de abolição violenta do estado democrático de direito seja absorvido pelo crime de tentativa de golpe de Estado (o que levaria os réus, se condenados, a responder apenas pelo último crime, e não por ambos). Talvez Fux conteste também o fato de o julgamento estar acontecendo na Primeira Turma, e não no plenário, embora essa questão já tenha sido superada. Ele pediu, na sessão desta terça-feira (9), que os outros ministros não o interrompam quando estiver lendo seu voto. Parece estar tentando se proteger de Moraes, que conhece as provas dessa ação penal como ninguém e costuma intervir quando alguém faz afirmações que ele julga infundadas.

O fato de Moraes e Dino terem votado exatamente como o esperado não significa que estejamos diante de um julgamento de cartas marcadas, como dizem os apoiadores de Bolsonaro. Os principais debates jurídicos do caso, como a competência da Primeira Turma para julgá-lo e a cumulação de alguns crimes, já haviam sido resolvidos antes do início do julgamento. Inexplicável seria o tribunal mudar de opinião justo agora, no momento de dar seu veredito. Além do mais, em processos judiciais como esse, fartamente embasados em provas conhecidas e convincentes, o resultado costuma mesmo ser previsível. Um processo criminal não é um romance de Agatha Christie: não combina com desfechos surpreendentes.

Ainda assim, havia algumas dúvidas no ar quando começou a sessão. Não estava claro, por exemplo, quão eficaz seria a estratégia dos generais Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa. Durante a fase de instrução da ação penal, os dois se esforçaram para parecerem distantes e discordantes de Bolsonaro nos momentos finais de seu governo, auge da maquinação golpista. O primeiro alegou ter perdido espaço e influência no Planalto; o segundo disse ter se esforçado para dissuadir o então presidente de medidas extremas (alegação que, na semana passada, produziu um notável diálogo entre o advogado de Nogueira e a ministra Cármen Lúcia).

Logo no início de seu voto, porém, Alexandre de Moraes fez ruir qualquer esperança que os dois generais pudessem ter. Ele exibiu, longamente, anotações de Heleno na chamada “caderneta golpista”. Elas mostram que o general não apenas aderiu à primeira ação da empreitada golpista – descredibilizar as urnas e a Justiça Eleitoral – como colocou o GSI a serviço da desinformação. Depois, ao encerrar seu voto, Moraes rebateu também as alegações de Nogueira, relembrando que foi o ex-ministro quem levou os comandantes militares para uma reunião em que foi apresentada uma versão modificada da minuta do golpe – isso depois de Nogueira ter assinado uma nota pública insistindo que havia pontos cegos na urna eletrônica, apesar de uma auditoria das Forças Armadas não ter detectado qualquer falha relevante no sistema de votação. Moraes não economizou adjetivos ao tratar desse episódio, referindo-se à tal nota como “esdrúxula, vergonhosa e criminosa”.

Repetida por vários advogados, a alegação de que o golpe não passou da fase preparatória também foi rebatida à exaustão por Moraes. Ele argumentou que o crime ocorreu numa trama complexa, composta por diversos atos praticados por vários personagens, muitos dos quais fazem parte de outros núcleos da acusação. Essa conduta, explicou Moraes, se prolongou no tempo e foi se ajustando ao longo do percurso, dependendo sempre do sucesso da empreitada anterior. Para enxergar o golpe é preciso contemplar o mosaico inteiro, e não apenas um ou outro ladrilho.

Essa execução prolongada começou após Bolsonaro ter se convencido que a anulação da condenação de Lula pelo STF, em abril de 2021, fora planejada para prejudicá-lo. A partir daí, Bolsonaro definiu sua estratégia e passou a colocá-la em prática em meados de 2021, com os ataques às urnas e ao sistema eleitoral, o envolvimento de órgãos públicos na produção de  desinformação, as ameaças ao STF e à Justiça Eleitoral, o convencimento da comunidade internacional de que havia uma fraude eleitoral sendo preparada (vide a reunião com embaixadores), o uso indevido da Polícia Rodoviária Federal para impedir eleitores de votar, o plano “Punhal Verde e Amarelo”, a operação “Copa 2022” (que só foi abortada no último instante por falta de apoio das Forças Armadas), as minutas de golpe apresentadas aos comandantes militares e, finalmente,  o 8 de janeiro. Tudo isso, afirmou Moraes, foi o golpe.

O relator ressaltou a todo instante que esses foram atos de execução, e não de mera preparação. Todos eles. É esse grande conjunto, e não apenas uma determinada live ou reunião, que caracteriza o golpe. Moraes lembrou também que mesmo o golpe mal-sucedido, do ponto de vista fático, é um golpe pleno e consumado do ponto de vista jurídico. Bolsonaro sempre quis traçar uma diferença entre os dois. Disse que não há golpe sem tiros disparados e canhões nas ruas. O ministro lembrou, corretamente, que o objetivo da lei é justamente evitar os tiros e os canhões.

Dino foi na mesma linha. Para ele, a lei penal começa a incidir no momento em que há risco aos chamados bens jurídicos protegidos – neste caso, a independência dos Poderes e a integridade do governo eleito. Como está claro, o risco foi máximo: bastava que o general Freire Gomes, em vez de dizer “não”, dissesse “sim”. O golpe estaria consumado. Além disso, lembrou Dino, houve, sim, violência: tanques desfilaram na Esplanada, policiais fecharam rodovias no dia do segundo turno, vândalos tentaram invadir a sede da PF, uma bomba foi plantada em um caminhão de combustível e ministros foram ameaçados de tudo o que se pode imaginar.

Moraes também se posicionou sobre a cumulação dos crimes, e das penas, de tentativa de abolição violenta do estado democrático de direito e de tentativa de golpe de Estado. Goste-se ou não do fato de a lei prever esses dois crimes, e não apenas um (como alguns defenderam na época em que ela foi sancionada – ironicamente, no governo Bolsonaro), tratam-se de duas tipificações diferentes, que não se confundem. A primeira serve para proteger a independência dos Poderes e o sistema de freios e contrapesos da República. Moraes lembrou que o próprio Executivo é quem costuma cometer esse delito, já que, nos golpes clássicos, são os presidentes que empregam força ilegítima, normalmente militar, contra o Legislativo e o Judiciário. Já a segunda tificação serve para proteger o Executivo da ação violenta de outros atores, caso eles tentem depor o presidente eleito. 

Moraes foi astuto ao citar exemplos da história brasileira que caracterizariam ora um crime, ora o outro. E ainda deixou claro que, mesmo após consumado um golpe de Estado e instalado um regime ditatorial, o crime de tentativa de abolição violenta do Estado de Direito poderia, em tese, ser cometido. Se, por exemplo, a legislação atual fosse vigente em 1964, o crime praticado pelos militares em 31 de março daquele ano seria golpe de Estado, porque a vítima foi o governo legitimamente eleito de João Goulart. Já em 1965, quando foi promulgado o Ato Institucional nº 2, que interveio diretamente no STF, a lesão foi a outro bem jurídico: a independência do Judiciário.

O golpe de 1964, portanto, se encaixaria na primeira tipificação. O AI-2, na segunda. Se Fux defender a tese da absorção de um crime pelo outro, Moraes poderá perguntar a ele se o AI-2, uma das maiores violências já cometidas contra o Judiciário no Brasil, não deveria ser punido e sim absorvido pelo crime anterior.

Um último ponto relevante da sessão foi a delação de Mauro Cid. As defesas, especialmente a de Braga Netto, pleitearam sua anulação, argumentando que houve vícios graves tanto na celebração do acordo, quanto no comportamento de Mauro Cid durante sua vigência. É verdade que o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro não foi um delator exemplar. Mas a questão é saber se sua delação deveria, por isso, ser anulada. Moraes e Dino, em uníssono, disseram que não: a delação é válida, e portanto também são válidas as provas trazidas por Cid aos autos do processo. Se ele foi omisso, mentiu ou descumpriu os termos do acordo ao usar um perfil de rede social de sua esposa, por exemplo, isso deve ser avaliado mais adiante e pode impactar a sua pena. Mas nada disso implica nulidade do ato – o que ocorreria, por exemplo, caso Cid tivesse sido coagido a celebrar o acordo, hipótese que ele mesmo já descartou.

Se ainda há algum mistério no processo, ele está no tamanho das penas. Cid deve estar apreensivo com a possível perda de seus benefícios de delator. Bolsonaro e Braga Netto têm razões de sobra para preocupação, porque Dino já adiantou que, do seu ponto de vista, a responsabilidade de ambos foi alta. Moraes foi explícito ao dizer que Bolsonaro foi o “líder da organização criminosa”, expressão repetida por ele diversas vezes. Isso é importante não apenas para avaliar a gravidade de seus atos, mas também para definir o regime de cumprimento de pena. Graças a uma alteração ocorrida justamente no governo Bolsonaro, a lei prevê que líderes de organizações criminosas armadas devem “iniciar o cumprimento da pena em estabelecimentos penais de segurança máxima”. Bolsonaro, é certo, torce pela prisão domiciliar.

Como já foi dito, o tema das penas foi o único em que Dino sinalizou ter uma leve divergência com relação a Moraes, o que deve levá-lo a defender penas menores para Augusto Heleno, Paulo Sérgio e Alexandre Ramagem. Só o que está claro, até aqui, é que as condenações do 8 de janeiro deveriam servir de piso para as condenações da tentativa de golpe. Se os peixes pequenos receberam penas de até 17 anos de prisão, os peixes grandes devem ser condenados a um tempo de reclusão ainda maior.



Piauí Folha

Talvez te interessem:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *


© Copyright Meu Portal de Notícias 2022. Todos os direitos reservados.