“Eu amo o The Washington Post. Fico de coração partido por concluir que devo deixá-lo.” Assim dizia a carta de demissão que Ruth Marcus apresentou aos seus chefes, em março deste ano. A jornalista americana trabalhou no jornal durante quarenta anos, desempenhando diferentes funções e cargos de chefia. Atuou no conselho editorial, cobriu campanhas presidenciais e assinou uma coluna fixa que lhe rendeu indicação ao prêmio Pulitzer. Não se via trabalhando em outro veículo. Até que, pela primeira vez nessas quatro décadas, teve uma coluna barrada pelo jornal.
No artigo, que nunca foi ao ar, Marcus criticava a nova orientação do Washington Post com relação às páginas editoriais: focar em “liberdades individuais e livre mercado”, nas palavras de Jeff Bezos, o bilionário que criou a Amazon e desde 2013 é dono do jornal. A interferência de Bezos no trabalho dos jornalistas foi algo sem precedentes, e reflete sua aproximação com Donald Trump neste segundo mandato do republicano. Marcus, por isso, concluiu que a única saída digna era pedir demissão. Dias depois, publicou um artigo na revista The New Yorker explicando o que havia ocorrido e os motivos de sua decisão. O texto teve grande repercussão.
Marcus, que hoje é colaboradora fixa da New Yorker, veio ao Brasil para participar do Festival piauí de Jornalismo, no domingo (7). Entrevistada no palco pelo editor executivo do site da piauí, Daniel Bergamasco, e pelo colunista do jornal O Globo Bernardo Mello Franco, a jornalista americana fez um relato detalhado do episódio. “Eu não queria pedir demissão”, ela disse. “Mais do que em qualquer momento da minha vida profissional, eu tinha vontade de escrever e explicar para as pessoas o que estava acontecendo [na política americana] e que aquilo não era normal e lícito. Não queria que a minha voz fosse silenciada e nem sair da linha de frente.”
A censura, lembrou Marcus, foi só a gota d’água. A pressão de Bezos já vinha se fazendo notar nas decisões editoriais do Washington Post havia algum tempo. No ano passado, o jornal decidiu não endossar nenhum candidato à presidência, apesar de ser evidente a qualquer observador da cena política, àquela altura, o risco a que a democracia estaria submetida se Trump voltasse à Casa Branca. A neutralidade do Post custou caro: em poucos dias, o jornal perdeu mais de 200 mil assinantes.
“Em 2024, Trump aumentou o volume do que queria fazer com os Estados Unidos, e a nossa voz editorial estava mais baixa”, afirmou Marcus. Ela disse que ainda confia na seção de notícias do Washington Post, mas que se sente “decepcionada” ao ler as páginas de opinião. Hoje, na New Yorker, a jornalista escreve principalmente sobre a relação entre Donald Trump e o Judiciário americano. Mais especificamente, sobre a inação da Suprema Corte em meio ao desmantelamento da democracia no país.
Marcus é autora do livro Supreme Ambition: Brett Kavanaugh and the Conservative Takeover (ainda sem tradução para o português). A obra conta como, ao longo de trinta anos, os republicanos se mobilizaram para conquistar a maioria das vagas da Suprema Corte. O livro, escrito no formato de uma longa reportagem, também documenta as manobras de Trump para obter decisões favoráveis ao seu governo.
A jornalista contou no Festival piauí que, se pudesse, escreveria um livro sobre a guerra de Trump contra os advogados. Segundo ela, há um modus operandi no governo para intimidar e punir escritórios de advocacia que entram com processos contra o presidente. Trump tem uma lista de advogados “inimigos”, afirmou Marcus.