O professor, podcaster e ativista Chenjerai Kumanyika cresceu ouvindo as histórias sobre a prisão de seu pai. Makaza Kumanyika, líder do movimento negro que lutou por direitos civis, foi detido por policiais do Departamento de Polícia de Nova York (NYPD) em 1964. A prisão ocorreu depois que o militante tentou efetuar a prisão civil do prefeito Robert F. Wagner por alocar dinheiro público em projetos que permitiam discriminação racial. A obsessão de Kumanyika – o filho – pela história da polícia e o desejo de se aprofundar no tema levou à pesquisa do podcast Empire City, do site Crooked Media, da Wondery, e da PushBlack sobre as origens racistas da instituição. “Parte do podcast era eu tentando recuperar uma versão do meu pai que existiu antes de eu nascer. O Empire City é minha própria trajetória”, explicou neste domingo, em conversa com os repórteres da piauí Angélica Santa Cruz e Gilberto Porcidonio, durante o 9º Festival piauí de Jornalismo, realizado na Cinemateca Brasileira.
Kumanyika – que também é professor assistente no Instituto Arthur L. Carter de Jornalismo da Universidade de Nova York – contou sobre a produção do podcast e a importância de recontar histórias do passado. Empire City narra como a criação da polícia de Nova York estava diretamente relacionada à captura de negros alforriados, que depois eram levados ao Sul dos Estados Unidos para voltarem à escravidão. No primeiro episódio, ele conta a história de Tobias Boudinot e do “Clube do Sequestro”, uma gangue de policiais que sequestrava negros livres e emancipados e os vendia como escravos nas décadas anteriores à Guerra Civil. Outros episódios apresentam uma entrevista com um descendente de um inspetor corrupto do Departamento de Polícia de Nova York no século XIX, conhecido por dizer que “há mais lei na ponta do cassetete de um policial do que em uma decisão da Suprema Corte”.
Sua pesquisa ajuda a desmistificar ações racistas como desvios pontuais. “O movimento Black Lives Matter foi muito visual, a gente tinha todas as imagens na câmera. E eu percebi que a realidade do colonialismo não estava na câmera”, explicou ele. Cada episódio contribui para dar complexidade ao panorama geral e desafia interpretações reducionistas nas duas pontas do espectro político – tanto a ideia de que a polícia sempre trabalhou pela segurança pública como a de que é uma instituição fadada à corrupção. “É importante avaliar a polícia estruturalmente”, disse Kumanyika. “Existem seres humanos ali [..] Ver o que o sistema faz com as pessoas dentro do uniforme também é parte do processo”.
Para o podcaster, a relação da instituição com o autoritarismo aflorou no segundo mandato do presidente Donald Trump, especialmente com a ocupação de Washington e Los Angeles pela Guarda Nacional e a atuação da polícia de imigração, a ICE (Immigration and Customs Enforcement). “Era ilegal ele ter feito isso, mas o estrago foi feito”, disse Kumanyika. “Hoje as pessoas estão preocupadas com o que vai acontecer quando elas forem presas. Pela forma como a ICE tem operado em cooperação com outros departamentos, você não consegue saber qual policial está por trás de cada prisão. Os jornalistas [norte-americanos] não estão acostumados a lidar com esse tipo de coisa”.
Empire City fez de Kumanyika uma voz poderosa na cobertura do racismo sistêmico norte-americano, brutalidade policial, pobreza e outras lutas contemporâneas do movimento negro. Mas antes disso, no fim dos anos 1990, ele também teve uma breve carreira como rapper num grupo chamado Spooks, uma experiência que conversa com seu ativismo atual. Kumanyika reconhece os problemas discursivos do hip hop – como o estímulo ao machismo e violência – mas valoriza o ceticismo do gênero em relação aos mitos americanos de construção nacional.
Ele também é criador, produtor e apresentador do podcast Uncivil, da Gimlet Media, que destrincha a história não contada da Guerra Civil dos Estados Unidos (1861-1865) e a luta pela libertação dos negros escravizados no país. Para isso, se baseia em narrativas pessoais, histórias de descendentes e memórias da comunidade — com a trilha sonora que permite aos espectadores imaginarem as histórias narradas.
“Contação de história é a forma mais antiga de comunicação”, ressaltou Kumanyika ao comentar a importância da estrutura narrativa de seus projetos. “Eu tenho muito respeito a jornalistas que dão notícias todos os dias, mas o problema é que estamos exaustos, somos bombardeados o tempo todo e acabamos perdendo a continuidade histórica das coisas”. Essa discussão, argumenta ele, também deve ser feita na política. “Às vezes o partido republicano conta uma história de um jeito melhor que os democratas”. Kumanyika foi enfático, no final da conversa, em ressaltar a importância dessa ferramenta para preservar a memória. “Se eu não tiver poder para lutar, pelo menos não vou deixar você esquecer”, disse. “Ainda é radical lembrar e insistir”.