Milonga sem fim – revista piauí

Cerca de vinte pessoas ocupavam a plateia do pequeno e aconchegante auditório da Asociación General de Autores del Uruguay, em Montevidéu, no início da tarde de 23 de junho. Criada para organizar os direitos musicais no país – assim como o Ecad no Brasil –, a associação fez sua primeira grande arrecadação em 1930, durante um show de Carlos Gardel. E era justamente uma música dele – El día que me quieras – que funcionava como som ambiente para o evento daquele dia chuvoso e frio na capital uruguaia. 

Por volta das 13h15, a música parou e, do fundo do auditório, Gustavo Colman, 62 anos, pegou o microfone sem fio. Agradeceu àqueles que haviam enfrentado a intempérie climática e declarou abertas as Jornadas Gardelianas, série de dez palestras em dois dias, apresentadas por oito especialistas, que anunciavam uma grande ambição: derrotar de vez a “mentira francesista”. Trata-se da versão – difundida como verdadeira há décadas – de que Gardel, o mais famoso cantor de tango de todos os tempos, nome incontornável da cultura argentina, nasceu em Toulouse, no Sul da França, em 1890, sob o nome de Charles Romuald Gardés. 

Colman, organizador e anfitrião, e seu grupo de pesquisadores, prometiam provar que a história era outra: Gardel, na verdade, nasceu em Tacuarembó, Norte do Uruguai, em 1884 (se não antes), e não era filho biológico da francesa Berta Gardés e de Paul Jean Lasserre, mas de uma relação incestuosa do coronel Carlos Escayola com María Lelia Oliva, sua afilhada e cunhada. 

A discussão é antiga e travada em vasta bibliografia. Existem ao menos doze livros  francesistas e trinta uruguayistas, como se identificam os defensores da tese de Tacuarembó. Entre os argentinos, historicamente, reina a tese de que ele nasceu na França. Mas há quem discorde.

É o caso da argentina Martina Iñiguez, 85 anos, poeta e compositora de tango, que abriu as Jornadas com a palestra Carlos Gardel: fotografias que definem sua identidade. Martina se tornou “gardeliana” depois dos 50, após participar de um curso de poesia de lunfardo, a gíria das ruas e dos cortiços de Buenos Aires eternizada nas letras de tango. Daí para Gardel foi um caminho sem volta. Convencida da tese uruguayista, ela começou a escrever e dar entrevistas a respeito, o que era visto quase como heresia entre os argentinos. 

A tensão chegou ao ápice em uma das sagradas visitas que fez ao mausoléu de Gardel no Cemitério da Chacarita, em Buenos Aires, em um 24 de junho – data da morte do cantor, em um nebuloso acidente aéreo, em 1935. Martina foi expulsa aos gritos por uma das zeladoras do túmulo, que a acusava de difamar Berta Gardés como velhaca. No ano passado, precisou de proteção policial para visitar a tumba do ídolo. “Uma guerreira. É a mãe de todos nós”, enfatizou Colman ao apresentá-la.

Na primeira de suas duas palestras, Martina começou prestando tributo aos pesquisadores que a antecederam, sobretudo o jornalista Erasmo Silva Cabrera, codinome AVLIS, “o primeiro a pôr em dúvida a difundida biografia francesa de Gardel” com uma série de reportagens no jornal uruguaio El País e um livro publicado em 1967. Até ali, galopava folgada no páreo, com muitas cabeças de vantagem, a versão de que o artista nascera na França, filho de Berta, como consta em seu testamento – que os uruguayistas denunciam como fraudulento. 

As revelações de AVLIS deram origem a muitas outras pesquisas, que partiram do Uruguai e foram desaguar do outro lado do Rio da Prata, como no caso de Martina. Agora, diante de uma audiência restrita, ela ia direto ao ponto: “Charles Romuald Gardés e Carlos Gardel foram duas pessoas distintas, com idades, lugares de nascimento e filiação completamente diferentes.”

Sob aplausos e uma dose de suspense, Martina encerrou sua exibição e deu lugar a outro pesquisador, o colombiano Maurício Umaña, 71 anos. Ele trouxe à mesa mais um tema controverso: o acidente aéreo, no aeroporto de Medellín, que matou Gardel e mais dezesseis pessoas – entre elas, o parceiro Alfredo Le Pera, brasileiro, com quem compôs alguns de seus maiores sucessos, como Por una cabeza e Mi Buenos Aires querido.

Engenheiro mecânico que hoje vive em Miami, Umaña tem ligações familiares com o episódio. A mãe e as tias estiveram no local da tragédia, pois seu pai trabalhava na companhia alemã SCADTA, que rivalizava com a colombiana SACO. Nos dias que antecederam o desastre, a empresa local “roubara” o voo de Gardel da SCADTA com um desconto nas passagens. Empolgado, o aviador e dono da SACO, Ernesto Samper Mendoza, resolveu ele mesmo pilotar o recém-adquirido Ford Trimotor, apesar da pouca experiência com aquela aeronave – e de ter como copiloto um jovem aprendiz.

De acordo com Umaña, Samper não conseguiu decolar e bateu, a cerca de 90 km/h, contra um avião da SCADTA que estava em uma área de manobra ao lado da pista. A partir daí, como quase tudo que se refere a Gardel, o episódio é cercado de lendas. Uma delas é que Samper tentou dar um rasante sobre a aeronave da companhia alemã, como resposta a uma provocação anterior. Outra, mais popular na imprensa e entre pesquisadores, é que o acidente se originou de uma briga na cabine, na qual Gardel levou um tiro de um dos companheiros após reclamar de um episódio em show recente. De fato, o artista tinha uma bala alojada no pulmão, mas ela estava lá havia quase vinte anos, desde que fora alvejado numa briga depois de uma apresentação em Buenos Aires.

“Assim que aconteceu o acidente, os diretores da SACO tiraram todo seu pessoal do aeroporto para que não falassem com ninguém, e depois começaram a inventar todas essas histórias”, pontuou o engenheiro, lembrando de uma querela diplomática entre Colômbia e Alemanha sobre quem tinha culpa pela morte de Gardel. Com projetos técnicos das duas aeronaves, planos topográficos do aeroporto, registros fotográficos e até uma simulação computadorizada, Umaña defenestrou as duas versões. Assegurou que a tragédia se deu por outro motivo: a imperícia do piloto Samper e por excesso de peso na cauda, lotada de bagagens, que impediu o avião Ford Trimotor de levantar voo.

O choque entre duas aeronaves cheias de combustível no tanque resultou em uma explosão seguida de grande incêndio. “Tenho fotos dos cadáveres, mas não gosto de mostrar porque são muito pesadas”, ponderou, projetando algumas imagens menos nítidas. A gabardine que Gardel usava, explicou Umaña, evitou que seu corpo fosse totalmente carbonizado, preservando inclusive seu passaporte, que estava no bolso, no qual se lê: “Nascido em Tacuarembó, Uruguai.” O pesquisador mostrou uma foto com o registro.

Martina, então, retomou seu lugar à frente do palco e iniciou a segunda parte de sua exibição. Baseada em um calhamaço de documentos e fotos, começou a explicitar sua tese principal: a de que Charles Romuald Gardés e Carlos Gardel são pessoas diferentes.

De acordo com a pesquisadora, Charles Romuald nasceu em Toulouse, em 1890, fruto da relação entre Berta Gardés e Romualdo López, tipógrafo do jornal El Heraldo. Antes de se mudar para a França, o casal vivia em Tacuarembó, a verdadeira cidade de Carlos Gardel, segundo a tese dos uruguayistas. Nesta versão, o famoso cantor de tango nasceu entre 1883 e 1884 (há divergência de datas) e é filho do coronel Carlos Escayola e María Leila, sua afilhada de 14 anos. O militar Escayola era dono do El Heraldo.

Como a família de Romualdo López, o tipógrafo, reprovava a relação com Berta, pois a francesa não gozava de boa fama no povoado, o coronel Escayola aproveitou a oportunidade para se livrar de dois problemas de uma tacada só. O militar deu um bom dinheiro à moça para que ela fosse embora levando no ventre o filho (Charles Romuald) com Romualdo, seu funcionário no jornal, e também o pequeno Carlos Gardel, à época com 6 ou 7 anos, fruto do incesto com sua afilhada. Nessa hipótese, Berta Gardés deixou Gardel aos cuidados de uma amiga em Buenos Aires antes de partir para Toulouse.

Após o nascimento de Charles Romuald na França, Berta retorna à capital argentina e, anos depois, entrega o filho à adoção clandestina. Charles é acolhido por uma família, que passa a chamá-lo de Carlos Vacca. A tese é nebulosa, mas os uruguayistas entendem que Carlos Gardel, já na adolescência e precisando de documentos para iniciar a fase adulta, apropria-se paulatinamente da identidade abandonada pelo “irmão” Charles, declarando-se eventualmente com o sobrenome de Berta (Gardés) e assumindo-a publicamente como mãe.  

“A atitude de Berta foi generosa com ambos os filhos: ao próprio [Charles Romuald Gardés], ofereceu uma família, livrando-o do estigma de ser ‘filho de mãe solteira’; ao outro [Carlos Gardel], presenteou com uma identidade – ainda que falsa – que lhe permitiu se apresentar perante a sociedade mostrando que tinha uma mãe”, considerou Martina. 

A pesquisadora explicou que Gardel, após se mudar para Buenos Aires com Berta, viveu por breves períodos em Tacuarembó e Montevidéu justamente para não perder contato com sua família verdadeira. Como prova, apresenta uma fotografia amplamente difundida como sendo a de Gardel no 1º ano de uma escola argentina, mas que ela afirma ser em uma escola uruguaia. Sua principal evidência é o fato de a sala ser composta por 55 meninos, típico das “Escolas de Varones [homens]” uruguaias. Para complementar sua argumentação, considerada quase irrefutável por seus seguidores, ela destaca uma projeção arquitetônica que alinha o cenário da foto com o pequeno Gardel na escola e a planta original de um prédio em Montevidéu. 

Em seguida, Martina apresenta um conjunto de três fotografias amplamente difundidas por Berta Gardés como sendo do Gardel criança, com idade entre 7 e 10 anos. Para a pesquisadora, no entanto, trata-se de duas crianças diferentes: duas imagens mostram Carlos Gardel e uma outra retrata Charles Romuald. Ela descreve diferenças físicas que considera perceptíveis. “Além da dessemelhança de lábios, nariz, olhos e orelhas, vemos uma grande diferença na amplitude da testa. Os crânios também são diferentes: o de Charles Romuald é dolicocéfalo [alongado e estreito] e o de Gardel é braquicéfalo [arredondado e achatado]”, apontou ela, munida de uma análise forense.

A pesquisadora afirma que, como parte do acordo para esconder a origem verdadeira de Gardel, Berta desfrutou de uma pequena parte da herança do artista até morrer em 1943. E não esqueceu de seu filho biológico, Charles Romuald, e da família Vacca, a quem doou uma casa, conforme outros documentos apresentados por Martina durante sua exposição.

Já o proveito da parte mais gorda do legado da estrela do tango, referente aos direitos autorais, que expiraram em 1986 na Argentina, ficou com seu empresário, Armando Defino, também citado no testamento apontado como fraudulento pelos uruguayistas. Está aí o motivo oculto da tese francesista: para impedir que parentes uruguaios demandassem uma parte da herança, era preciso afirmá-lo francês e filho biológico de Berta. Segundo Colman, o plano surgiu do próprio Charles Romuald, em conluio com Defino, para receber sua parte do espólio até morrer, aos 93 anos, como Carlos Vacca.

Um parêntese: em entrevistas e documentos, como o passaporte, Gardel dizia-se uruguaio – e foi como uruguaio que, já adulto, se naturalizou argentino. Após sua morte, a tese francesa ganhou tração não apenas pela estratégia de Berta, Defino e Charles Romuald, mas também porque seus parentes uruguaios não queriam reviver um tabu familiar que envolvia a origem incestuosa do artista. Desencorajados pelo medo de revirar o passado, deixaram de reivindicar seus direitos.

Diante do espanto geral e das numerosas perguntas que começaram a brotar do restrito público, Martina, já em pé, acionou o providencial reforço da segunda estrela das Jornadas Gardelianas. Tratava-se do pesquisador argentino Marcelo O. Martínez, que veio diretamente de Madri, onde vive. Com palestra programada apenas para o dia seguinte, ele prontamente subiu ao palco, postou-se ao lado de Martina e, com uma memória impressionante de datas, nomes e dados, socorreu-a entre o cipoal de dúvidas.

Naquele mesmo dia, pela manhã, Martina e Martínez riram ao lembrar de quando se conheceram em uma conversa com a piauí. “Nós brigávamos, ele era francesista”, entregou a poeta. “Claro, porque comecei me interessando pela música, e antes de Martina éramos todos francesistas”, confirmou o designer de 57 anos. Quando tomou conhecimento dos argumentos de Martina, chegou à conclusão de que Gardel só podia mesmo ser uruguaio e se engajou na batalha. “A questão com Gardel é que, quando você se põe a investigar, não consegue parar”, explicou.

Entre surpresos e empolgados, os espectadores aproveitavam os intervalos para tentar alguma informação extra dos palestrantes, repercutir o que havia sido revelado e enfatizar o porquê de estarem ali. “Sou gardeliano”, identificou-se o montevideano Roberto Cazalás, de 80 anos. “No tango, existe Gardel e depois o resto, com todo o respeito.” Ele afirma que desde pequeno, nas conversas com as primas de Minas de Corrales, cidadezinha a 60 km de Tacuarembó, ouvia dizer que Gardel era uruguaio. “Novidade, pra mim, é a tese francesista”, ironizou, relatando que até hoje briga com os amigos de Buenos Aires, onde morou por muitos anos, por causa disso. “Não dão o braço a torcer, é uma espécie de fanatismo.”

O professor universitário Conrado Bonilla, de 49 anos, saiu de Punta Del Este, a duas horas de Montevidéu, para participar do evento. “Ser gardeliano é ser um fã não só da pessoa, mas do personagem e de tudo o que ele significa.”A paixão, às vezes, lhe causa inconvenientes com a esposa, que reclama do acúmulo de livros e revistas sobre Gardel e do retrato em preto e branco do ídolo que mantém há anos na parede.

Para Bonilla, a teimosia dos argentinos em defender a tese francesista tem a ver até com a rivalidade no futebol. Na primeira Copa do Mundo, em 1930, no Uruguai, Gardel esteve na concentração das duas seleções. Os ânimos se acirraram quando os dois times chegaram à final, vencida pelo Uruguai por 4 a 2, uma derrota que os adversários nunca assimilaram. “Falam que Gardel é francês por desforra”, insinuou.

No segundo dia de evento, 24 de junho, as Jornadas Gardelianas foram transferidas para um auditório no prédio anexo do Palácio Legislativo do Uruguai. Apesar da expectativa de Colman, apenas 1 dos 99 deputados da casa compareceu – Pablo Inthamoussu, da governista Frente Ampla. Outro desfalque era Martina Iñiguez, a estrela do primeiro dia, que voltara para Buenos Aires a fim de cumprir o ritual de visitar o túmulo de Gardel no aniversário de sua morte. Assim como no primeiro dia, o público diminuto – cerca de quarenta pessoas – se repetiu.

O primeiro a falar foi Marcelo O. Martínez. O ponto central de sua exibição foi sustentar que Gardel, apesar de renegado pelos pais biológicos, passou muitas temporadas com parentes da família Escayola, em Tacuarembó, em Montevidéu e, depois, em Buenos Aires, onde se consagraria no bairro de Abasto. O fato de Gardel não morar com Berta por longos períodos é mais um sinal de que ela não é sua mãe biológica, confirmado por uma ausência notável: segundo o pesquisador, não existe sequer uma fotografia deles juntos.

Chegou a vez, então, do matemático e professor de estatística Eduardo Cuitiño, de 58 anos, que analisou a caligrafia do artista. Ele afirmou que o testamento pode ter sido forjado, pois, apesar do capricho ao copiar a letra do cantor, as palavras não foram escritas de forma contínua. “Não é de Gardel porque as letras estão cortadas, não há coerência.” 

Em seguida, comentou brevemente a “biologia complicada” do ídolo, que tinha tendência a engordar, e contou o segredo de seu famoso sorriso: placas de porcelana. Isso é importante não porque provaria que Gardel talvez tenha sido também um precursor na área da estética odontológica, mas porque, com os dentes preservados, pode-se obter amostras do DNA mitocondrial, transmitido pela mãe. Seria a base para que o governo uruguaio fizesse uma requisição judicial para obter um “teste de DNA conclusivo”, sugeriu Cuitiño. Talvez pelas dificuldades jurídicas, políticas e diplomáticas envolvidas, já que o corpo do artista está em um cemitério argentino, a proposta não entusiasmou os presentes.

Na reta final do evento, quem tomou a palavra foi María Selva Ortiz, socióloga de 56 anos que não se define como uma gardeliana. Ela nasceu em Tacuarembó, a mesma cidade de Gardel (segundo os uruguayistas), e se dedica a estudar a sociedade local. Nasceu daí o livro El silencio de Tacuarembó, publicado em 1995, resultado de um trabalho acadêmico que investiga por que a população evitava comentar publicamente a tese de que o artista havia nascido no povoado. 

A pesquisa examina pontos que circundam a história de Gardel. Um deles está relacionado ao coronel Escayola. Chefe político e militar da região, fazendeiro, tocava violão, gostava de teatro – tanto que construiu um com seu nome – e era famoso por suas aventuras amorosas – especula-se ter tido mais de cinquenta filhos, contabilizados os ilegítimos, a grande maioria. 

Casou-se três vezes, e com três irmãs. Em 1868, com Clara Oliva, que morreu três anos depois, deixando-lhe duas filhas; em 1873, com Blanca Oliva, que morreu em 1886, acrescentando-lhe mais seis filhos à conta; e, em 1889, com María Lelia, a mais nova das irmãs Oliva, que morreu em 1905 e deu-lhe outros cinco filhos. Ou seis, se contarmos Gardel. 

Como o coronel era, além de cunhado, padrinho de batismo de María Lelia, as leis da Igreja Católica inicialmente o impediram de se casar com ela. Foi preciso pedir uma permissão especial a Roma, que chegou quando ela tinha 20 anos (e ele 50), celebrando-se a boda. Só que Gardel, segundo os uruguayistas, foi concebido antes disso, quando María Lelia mal entrara na adolescência. Este o motivo da operação-abafa que envolveu Berta Gardés, aliás, amante do coronel.

Aqui abre-se um parêntese sobre a história de Berta Gardés. Ao completar a maioridade, ela foi para Tacuarembó para trabalhar como passadeira na Companhia Francesa de Ouro, que explorava as minas da região. Como a febre do ouro foi breve e a atividade entrou em declínio, Berta precisou trabalhar em outro ofício, onde conheceu Escayola. Era em “La Casona”, um prostíbulo de luxo que o coronel abrira para si e para os amigos da elite local. 

Neste ponto, tanto franceses, uruguaios e argentinos preferem tratar o assunto com discrição. María Selva, falando à piauí depois de sua apresentação, destacou que não há nada de errado nisso. “Ela foi corajosa”, acrescentou, considerando que sem o trabalho na companhia de mineração e sem dinheiro, não restavam muitas alternativas à estrangeira Berta. A fragilidade de sua condição econômica pode explicar o acordo com Escayola para levar o bastardo Gardel e o filho que ela já carregava no ventre – Charles Romuald – para longe dali, evitando o escândalo.

Restava uma última exibição nas jornadas gardelianas: “Enfoque jurídico sobre Gardel”, que prometia delinear os horizontes para a causa uruguayista. O palestrante, porém, não estava lá. Seu nome, Daniel Danmarie W., que constava na programação distribuída pela internet, era na verdade um pseudônimo do colaborador, alguém com “atuação no âmbito jurídico” de Buenos Aires que, com receio de represálias, preferia não se expor. “Que estranho que, noventa anos depois da morte de Gardel, um argentino ainda tenha medo de falar publicamente sobre ele ter nascido no Uruguai”, comentou o gardeliano Bonilla.

Em lugar disso, e já pelo avançado da hora, Colman assumiu o microfone. “Temos que devolver a Gardel aquilo que lhe deram em vida e que não se pode tirar depois de sua morte, que é sua identidade. Nós, como rioplatenses, não podemos permitir a mentira francesista”, discursou, lembrando que o ídolo só poderia ser argentino, como de fato se naturalizou, se fosse uruguaio, como afirmara nas certidões e declarações que usou em vida. Afinal, ele jamais havia apresentado um documento francês em Buenos Aires. 

Gustavo Colman é um montevideano clássico: usa sapato, calça social e sobretudo quase sempre escuro. Cresceu ouvindo Beatles, depois encantou-se pelo jazz, e só foi aderir ao tango há pouco mais de duas décadas. “Há uma máxima que diz que o tango te espera. Foi exatamente o que aconteceu comigo, já ao redor dos 40 anos.”

A paixão, claro, foi avassaladora. Deixou o serviço público federal, onde atuou na área da educação, e foi trabalhar com projetos culturais privados. Há 21 anos, organiza o TANGOvivo, festival que procura valorizar o gênero, atento também à sua renovação – como no espetáculo musical Milonguita, que antecedeu as Jornadas, partindo das raízes tangueiras para chegar à mistura com o hip hop, por exemplo. 

No dia seguinte às Jornadas, Colman sentou-se no salão do tradicional Bar Facal, na Avenida 18 de Julio, que ostenta uma estátua em bronze de Gardel muito requisitada pelos turistas para fazer fotografias. Pediu um café e sacou uma volumosa caderneta vermelha cheia de anotações. Queria fazer um balanço do evento. Quanto ao público diminuto, não se disse surpreso, nem preocupado – afinal, havia contratado uma equipe que gravou todas as palestras para disponibilizá-las na internet, onde, aí sim, atingiria o alcance desejado. “As Jornadas cumpriram o prometido.”

Durante a conversa com a piauí, ele informou que havia encaminhado um arrazoado à Comissão de Direitos Humanos da Presidência da República, solicitando que encampasse a causa do direito à identidade uruguaia de Gardel junto à Corte Internacional dos Direitos Humanos. A frase final do ofício, como um bom tango, não economizava na dramaticidade: “É hora de que sua pátria, seus irmãos de bandeira [Uruguai e Argentina], escutem sua voz, já não nos tangos, mas aquela imperceptível, que há noventa anos grita em silêncio pedindo justiça.”



Piauí Folha

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