“Não que eu tenha sido rápido na tomada de consciência, mas ficou evidente para mim, ao longo do tempo, que minhas leituras eram tóxicas. Nelas, negros e colonizados eram sub-homens”, escreve o romancista martinicano Patrick Chamoiseau no ensaio O enigma do contador, que a piauí publica nesta edição. Ele continua, sobre suas leituras: “Apartada das civilizações, a África somente surgia (entre Tarzan e grandes exploradores) para ilustrar os irremediáveis da miséria, da bestialidade ou da barbárie. A cultura antilhana era um doce folclore. Suas tradições só tinham lugar na sala de curiosidades ou nos balaios turísticos cheirando a baunilha. A paisagem paradisíaca apagava o país.”
Chamoiseau é um dos principais nomes da literatura em língua francesa atual. Nascido em Fort-de-France, na Martinica, em 1953, publicou, entre outros, Texaco (Companhia das Letras), livro vencedor do Prêmio Goncourt de 1992, e Contos dos sábios crioulos, recém-lançado pela Editora 34. O trecho publicado pela piauí faz parte do livro de ensaios O contador, a noite e o balaio, a ser lançado em setembro, também pela Editora 34, em tradução de Henrique Provinzano Amaral.
No ensaio O enigma do contador, Chamoiseau conta como descobriu a leitura e a literatura, na infância. Sua mãe lhe trazia, em pacotinhos amarrados, livros e revistas que comprava em um mercado, toda semana. “Comecei a ler assim, de pacotinho-amarrado em pacotinho-amarrado, sem discriminar muito, aprendendo a derreter o prazer da leitura com as leis do acaso e o fogo único de uma circunstância.”
Para dispor de obras que refletissem sua vida nas Antilhas, ele passou a frequentar a Biblioteca Schoelcher, em Fort-de-France, a capital da Martinica. “Ainda me vejo subindo os poucos degraus, atravessando uma espécie de nave entre as falésias de livros encapados com cheiro de couro amaciado, de arquivo morto, de barata seca, de naftalina. Eu me vejo me aproximando do velho bibliotecário, que cochilava durante a tarde em meio à poeira de sua sala”, conta o escritor. “Tocado pela minha iniciativa de negrinho bizarro, esse ser humano me permitiu o acesso a um velho armário gradeado onde se eternizavam, num recanto de esquecimento, os livros que diziam respeito às Antilhas.”
Eram livros de piratas em degredo nas ilhas antilhanas, livros de religiosos eruditos com crônicas de suas estadias nas Américas, livros de colonialistas felizes de possuir ilhas no Caribe. “De maneira geral, eram os vencedores que seguravam a caneta, e quando não eram eles, era seu próprio e único imaginário que se intrometia na evocação desse país e que dizia o mundo.”
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