Na 19ª Bienal de Veneza, iniciada em maio e que vai até novembro deste ano, logo na primeira nave do Arsenale – imenso complexo naval que, já na Baixa Idade Média, transformou a lagoa de Veneza numa zona de produção bélica, dragando áreas de maré, derrubando florestas dos Bálcãs para construir galés e selando canais em alvenaria – deparo-me com dois painéis de 3 metros de altura: Forest Gens.
O título instiga: gens, em latim, remete a linhagem. As imagens, de impacto imediato, revelam o assunto: a Amazônia. Não é fotografia, pintura ou maquete. Trata-se de uma cartografia crítica que, em oito mapas, desmonta a ideia de uma floresta intocada. A instalação mostra-nos uma Amazônia fruto de milênios de engenharia humana, tão sofisticada quanto qualquer cidade.
Selecionada para o eixo central da Bienal de 2025, curada pelo engenheiro-arquiteto Carlo Ratti, a obra costura imagens de satélite, nuvens de dados digitais, séculos de arquivos históricos e escavações arqueológicas. Saio do espaço expositivo convicto de que precisamos mudar, com urgência, a narrativa sobre o maior bioma tropical do planeta.
Por décadas, encaramos a Amazônia como antítese da civilização – um “museu da natureza” contra o qual medimos o impacto humano. Forest Gens prova o oposto. Mapa a mapa, descobrimos que povos originários cavaram canais, ergueram terraços, criaram solos férteis, assentaram cidades de baixa densidade e redes de circulação que remodelaram rios, terras e biodiversidade – sem suprimir a floresta. A mata que chamamos “nativa” resulta de um diálogo milenar entre natureza e cultura. Reconhecer isso não diminui seu valor ambiental; amplia-o, pois expande o nosso repertório de soluções.
São oito mapas divididos em dois painéis. As imagens alternam entre a visão espacial da floresta e outras mais aproximadas. Do lado esquerdo, o primeiro mapa de baixo para cima mostra um retrato ampliado da América do Sul. Conforme a lente aproxima, surgem linhas de energia, rotas marítimas, rodovias, oleodutos e cabos de fibra ótica, revelando uma floresta que jamais esteve isolada; pulsa em sincronia com as infraestruturas costeiras que ligam Brasília a Buenos Aires, Manaus a Miami. Enxergamos nove países entrelaçados por aldeias indígenas, vilas ribeirinhas, garimpos e frentes agrícolas. A mancha amarela do “arco do desmatamento” contrasta com territórios quilombolas e parques nacionais: tensão entre expansão recente e ocupação ancestral.
É também nos mapas que estão à esquerda do painel que observamos o leito do grande rio Amazonas, onde dois padrões estampam o território: turfeiras, ecossistemas que estocam carbono, e as terras pretas de índio, solos ultraférteis enriquecidos há milênios por cinzas, cerâmica e matéria orgânica, que funcionam como “impressões digitais” humanas. Agricultura e floresta aqui são indissociáveis. A poucos metros do solo, lasers LiDAR removem a copa das árvores e revelam círculos e quadrados perfeitos talhados no terreno: caminhos, canais, taludes – cidades-jardim avant la lettre. Nada disso era visível a olho nu.
À direita do painel está Llanos de Mojos, na Bolívia: savana sazonalmente alagada, recortada por centenas de montículos e canais que formam uma rede hidráulica monumental. Imagine os “terrazas altas” incas, mas adaptados ao trópico úmido. No coração dos Llanos surge Cotoca, espécie de capital perdida da cultura Casarabe. Três anéis concêntricos – taludes defensivos, avenidas sobre diques que mantêm as ruas secas na estação das chuvas – atestam antigas formas de urbanismo tropical de baixa densidade e provam que o ambiente amazônico foi manipulado de forma prolongada e sustentável.
Na sequência, num “zoom-in”, a maquete digital de Cotoca salta como se estivéssemos num game 3D. Curvas de nível coloridas escancaram plataformas de 20 metros de altura, erguidas com quase 571 mil m³ de terra – dez vezes o volume da maior pirâmide de Tiwanaku [sítio arqueológico formado entre 1500 e 600 d.c], ápice construtivo da época. Por fim, um close revela fossos que se inundam controladamente, canais que irrigam roças, ligações radiais que conectam vizinhos: cidade, agricultura e sistema hídrico formam um só organismo ecourbano.
Reconhecer a dimensão antropogênica da Amazônia não legitima o desmatamento; corrige um paradigma. Modelos de conservação baseados na ideia de “floresta sem gente” ignoram 10 mil anos de inovação endógena. Ao comprovar que sociedades pré-colombianas manejaram o bioma sem destruí-lo, abre-se caminho para políticas que combinem produção, biodiversidade e cultura.
Essa nova narrativa dissolve dicotomias falidas – produção versus preservação, urbano versus rural – e convida a pensar agroflorestas, bioindústrias, turismo científico e moradias inseridas num ciclo regenerativo. As intervenções ancestrais deram-se em escala continental e ao longo de milênios; nosso desafio é condensar esse legado em soluções para as próximas duas décadas.
Imagine Manaus, Belém, Santarém, Iquitos ou Letícia como laboratórios de bioeconomia urbana. Conectando energia limpa, cadeias produtivas de floresta em pé, ciência de dados, capital global e saber tradicional, essas cidades podem ancorar um novo pacto floresta-cidade. Quem visitar o mapa verá que o argumento é, afinal, cartográfico, não retórico: as manchas de ocupação milenar coincidem com solos férteis, rotas d’água e mosaicos de biodiversidade. Onde houve cidade indígena, há aptidão para cidade sustentável.
Forest Gens foi concebido por Gabriel Kozlowski, em uma parceria entre os estúdios Poles (Rio de Janeiro) e AO (São Paulo) com os arqueólogos Eduardo Goes Neves, Morgan J. Schmidt e Heiko Prumers. O trabalho, a meu ver, lança duas mensagens principais: as cidades amazônicas devem protagonizar o próximo capítulo da conservação e a inteligência que ergueu Cotoca pode orientar a transição climática do século XXI.
À medida que avançamos nos preparativos para a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a COP30, em Belém, é crucial que essas mensagens permeiem o debate global. A agenda urbana precisa estar presente tanto na mesa de negociações formais da Convenção-Quadro da ONU sobre Mudança do Clima (UNFCCC) quanto na Agenda de Ação, que congrega iniciativas voluntárias de governos, mercado e sociedade civil.
Um portfólio de políticas alinhado a essa visão – créditos de restauração conectados a cadeias urbanas, zonas de bioindústria em perímetros de conservação, sistemas de mobilidade fluvial elétrica e, sobretudo, uma governança que coloque as cidades na linha de frente da defesa climática – deve migrar do rodapé para o centro da pauta multilateral.
Posta no coração da Bienal de Veneza, Forest Gens oferece a cartografia desse futuro. A nós, amazônidas do presente, cabe traçar as rotas que ligam a história profunda à inovação urgente.